Cinema com Rapadura

Críticas   terça-feira, 03 de outubro de 2017

Uma Mulher Fantástica (2017): entre quimeras e realidades

Com uma história sem grandes momentos que aposta na potência de sua excelente protagonista, o filme nos leva a refletir sobre a emergência do respeito às diferenças.

Escolhido pelo Chile como seu representante na corrida por uma indicação ao próximo Oscar, “Uma Mulher Fantástica” é um drama dirigido Sebastián Lello (do elogiado “Glória”, 2013) sobre as agruras de uma cantora transexual quando uma tragédia abala sua vida. O calmo prólogo dedicado a mostrar o amor do casal formado pelo maduro e bem sucedido Orlando (Francisco Reyes) e a jovem cantora Marina (Daniela Vega) é rapidamente substituído por uma sequência de situações tensas, em que a protagonista tem que reiterar constantemente sua identidade feminina e defender-se das ameaças de uma sociedade insistentemente intolerante.

Vivido de forma primorosa pela cantora Daniela Vega, estreante no audiovisual, a obra venceu o prêmio ecumênico do juri no último Festival de Berlim e pode ser o sopro de vida que falta à Academia americana, caso seja escolhido entre os competidores e se o lobby para colocar a impecável atuação de Vega na categoria de Melhor Atriz se efetive. Embora haja irregularidades na estrutura do roteiro e o tom excessivamente formalista – quase apático – da direção de Lello possam ser problematizados, a obra tem tudo para atingir ambos os feitos.

A dinâmica progressivamente tensa de interação entre Vega e os outros personagens da trama evidenciam a intolerância em face às diversas representações do corpo e identidades de gênero, até mesmo em cidades bem desenvolvidas e entre pessoas de alto poder aquisitivo e com acesso à educação formal, como aquelas da história. Das nuances de atuação e também da direção que mais me agradaram, está o tempo que a câmera oferece às personagens para encarar o corpo e a figura de Marina, emitindo sobre ela, sem pudores, todas as suas opiniões construídas pelo preconceito e desinformação do senso comum. Um dos momentos mais curiosos é quando a ex-mulher de seu parceiro a conhece, justificando seu notável constrangimento frente à Marina por “não entender o que você é. Você é uma quimera” – conclui uma mulher sobre a outra.

Em outras ocasiões, esse enfrentamento é feito de forma mais direta, expondo o corpo da protagonista. Felizmente, a sensibilidade da história não impõe a atriz um exibicionismo fetichista, que ultrapasse as representações do constrangimento que sua personagem é sujeita na trama. Ou seja, os nus e outras invasões simbólicas do corpo transexual não são feitos de forma devassa, mas existe dentro de um argumento crítico que aponta a violência sobre essas pessoas e a negação sobre as diferentes identidades de gênero.

O roteiro original de Lelio e Gonzalo Maza, seu parceiro de produções anteriores, dedica-se a um universo bastante restrito e se escalona numa sequência de acontecimentos que não fogem ao esperado. Por vezes, uma irritação é provocada no espectador ao constatar que recorrentes conflitos poderiam ser evitados por uma minimamente maior capacidade elocutória da protagonista, mas nota-se que seu bloqueio também representa a situação de constrangimento pela qual ela passa, impedindo-a de respostas mais efetivas.

Ainda assim, a personagem de Marina deve ser descrita, sobretudo, como resiliente, enfrentando cada uma das progressões de sua “descida ao inferno” com a mesma expressão sóbria de suas apresentações líricas. O choro afetuoso se manifesta pontualmente, em cenas bastante tocantes. Há ainda espaço para as representações místicas e simbólicas, manifestas nas “visões” de Marina ou desvairadas fantasias da trama, como no número musical que termina com a protagonista “ganhando asas” e literalmente voando em direção a tela. Todas essas dimensões reforçam a capacidade de sobrevivência dessa mulher que, numa cena em que é amparada por um casal de amigos, acalma a amiga preocupada com sua situação dizendo: “eu vou sobreviver”.

Sobreviver é, inclusive, o que a maioria das pessoas que passam por uma transição de gênero como Marina fazem cotidianamente, diante de uma sociedade que não apenas não lhe oferece as mesmas oportunidades, como também julga e rechaça sua condição. Exemplo disso é o baixo número de homens ou mulheres trans até hoje no audiovisual. Nas produções americanas, recentemente tivemos o destaque de Jamie Clayton (a Nomi de “Sense 8″) e Laverne Cox (a Sophia de “Orange is the New Black”, indicada duas vezes ao prêmio Emmy pelo papel), demonstrando uma progressiva abertura de espaços. Nas produções latino-americanas, contudo, os exemplos ainda são bem parcos, e no Brasil o principal nome atualmente talvez seja o da talentosa Maria Clara Spinelli, premiada como melhor atriz no Festival de Paulínia pelo filme “Quanto Dura o Amor?” (2009), atualmente na novela da TV Globo “A Força do Querer”. Ainda assim, como diria a expressão americana, “muito pouco, muito tarde”.

Das poucas oportunidades oferecidas a essas atrizes (e também aos atores trans), a maioria parece estar em papéis ligados a dramas sobre questões de gênero, também condenando-as a meta-atuações em que sempre precisem falar de sua própria condição. Com isso, suas possibilidades de atuação também se limitam à mera revivicação autobiográfica e isso atrapalha ainda mais a progressão e o reconhecimento de suas carreiras. Situações assim, bem como o persistência preconceito quanto a autodeterminação de seus corpos, são exemplos que nos permitem vislumbrar o quão difíceis ainda são suas realidades.

Vinícius Volcof
@volcof

Compartilhe