Cinema com Rapadura

Críticas   segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O Jantar (2017): sobre queijos e vermes

Com uma trama centrada num denso dilema moral e quatro protagonistas fortes e entrosados, o diretor israelense reforça sua presença em Hollywood como um investigador psicológico de seus personagens

Entre a entrada e o digestivo de um longo jantar num restaurante sofisticado, dois irmãos e suas esposas enfrentam uma delicada crise familiar. Os irmãos são Paul (Steve Coogan, “Philomena”), professor de História para o colegial com um fascínio especial por guerras, e Stan (Richard Gere, “Sempre ao Seu Lado”), político prestigiado às vésperas de uma eleição para governador. As esposas são Claire (Laura Linney, “A Família Savage”), que lida com a instabilidade mental do marido, e Katelyn (Rebecca Hall, “O Despertar”), esposa troféu do poderoso político e madrasta de seus filhos.

Com quatro protagonistas de peso, o roteiro de Oren Moverman baseado no best-seller de Herman Koch se desenvolve numa sequência de delicadas situações dinâmicas que se alteram progressivamente, e contextos temporais sobrepostos que apenas pouco a pouco nos permitem entender as causas do rancor e ressentimento entre essas pessoas, especialmente entre os irmãos. Em ótima atuação, Steve Coogan torna-se o mais interessante entre os quatro, mas deixa espaço suficiente para o jeito discreto e sóbrio de Gere, teatral de Linney e energético de Hall. Especialmente nas cenas do jantar, desnecessariamente estruturadas a partir das fases de uma refeição (entrada, aperitivo, prato principal, sobremesa e digestivo), as duas duplas formam uma dinâmica que lembra as melhores adaptações teatrais de tema análogo e com foco nos personagens, raras hoje em dia, como “Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?” (1966), de Mike Nichols, e “Deus da Carnificina” (2011), de Roman Polanski. Como ponto fraco, contudo, esse “palimpsesto selvagem” da trama por vezes excede em suas idas e vindas, complicando para além do necessário o dilema central e arrastando o desenrolar da narrativa.

No núcleo da história há um complicado dilema moral, que diz respeito ao poder e a impunidade e coloca os personagens em posições distintas daquelas que inicialmente poderíamos prever. Começando com uma soturna montagem que mistura alimentos e cenas de cemitério, sentimos desde então algo de pútrido sobre esse drama, de início sendo impossível entender do que se trata. Entre dedicadas explicações do maître sobre os queijos, pratos e drinks que os convivas comem sem muito interesse e com muitas interrupções e rompantes agressivos, somos carregados para flashbacks de um passado recente e outro passado mais remoto que nos revelam as máculas dessa família, como o rompimento do casal Paul e Claire quando essa foi diagnosticada com câncer e ele entrou em crise, ou a relação de Stan com sua primeira esposa, Barbara (Chloe Sevigny, da série “Big Love”).

Os flashbacks também nos permitem entender que há um pano de fundo tão importante quanto as rusgas entre esses adultos. Trata-se de um episódio envolvendo seus filhos que ameaça o futuro da família com consequências seríssimas. Uma vez que Paul e Barbara têm um filho negro adotado, Beau (Miles J.Harvey, “Trocando os Pés”), trata-se também de uma questão que tangencia o racismo, destacando ainda mais o caráter burguês e deveras branco desses abonados norte-americanos.

Embora passe longe da perfeição, a trama de Oren é bastante corajosa em criar uma narrativa tão densa como metáfora para as crises familiares pelas quais todos passamos, colocando questões morais, éticas, políticas e sociais numa reflexão conjunta capaz de instigar o espectador. Repetindo temas e especialmente a equipe e os atores de produções anteriores, como “O Encontro” (2014), embora já tenha atingido resultados melhores em outros trabalhos, o autor parece estar se especializando em enredos que mergulham na dimensão psicológica de personagens fraturados. O melhor disso é que não se trata de estereótipos de doenças mentais, tampouco de casos específicos ou muito especiais, mas de dilemas bastante recorrentes e cada vez mais comuns no mundo contemporâneo.

Outra dimensão em que a trama é bem sucedida é em colocar o espectador numa posição incômoda de julgar moralmente seus personagens. A voz over de Paul que surge de tempos em tempos falando sobre a guerra traça uma analogia hobbesiana de “todos contra todos” que se define de forma cada vez mais clara a partir de seus protagonistas. Nesse sentido, entendemos que se trata de um verdadeiro embate retórico, em que cada um defende um ponto de vista e tem muito a perder. Assim, o roteiro facilmente nos inclina a julgar os adolescentes por sua insolência e desumanidade, mas seus pais nos fazem entender como operam as dimensões da proteção e da reprodução de comportamentos verdadeiramente repugnáveis.

Nesse sentido, “O Jantar nos oferece uma boa reflexão sobre como as famílias, sempre alçadas à máxima importância na construção dos nossos valores, podem muito bem fazer um papel de nos deseducar, e que as relações humanas são sempre infinitamente mais complexas do que parecem.

Vinícius Volcof
@volcof

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