Cinema com Rapadura

Críticas   segunda-feira, 27 de março de 2017

Silêncio (2016): Martin Scorsese continua mandando muito bem

Martin Scorsese mais uma vez prova ter absoluto domínio da linguagem cinematográfica, entregando um filme que, apesar de sofrer com um ritmo irregular, instiga questões significativas acerca da natureza da fé e outros temas relevantes.

Embora Martin Scorsese seja um diretor bastante eclético, que realiza desde documentários sobre música e filmes lúdicos de homenagem ao cinema, até dramas pesados e histórias sobre máfia, creio que exista uma linha comum que une basicamente toda a sua filmografia: narrativa densa, diálogos inspirados, trama repleta de subcamadas e, especialmente, personagens complexos buscando se estabelecer em um ambiente hostil. É quando resolve mergulhar de cabeça nessas características que o cineasta entrega seus melhores trabalhos e, em alguns casos, obras-primas da história do cinema – “Táxi Driver” (1976), “Touro Indomável” (1980), “A Última Tentação de Cristo” (1988), “Os Bons Companheiros” (1990) e por aí vai. Em tempos de memes de internet, portanto, não acredito que seja exagero dizer que este “Silêncio” seja o diretor em sua forma ‘raíz’.

Escrito pelo próprio juntamente com Jay Cocks a partir do romance homônimo de Shusako Endo, o longa acompanha a jornada de dois padres jesuítas europeus, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), rumo ao Japão em busca de seu mentor, Padre Ferreira (Liam Neeson), que sumiu no país enquanto – e porque – disseminava o cristianismo na região. Desembarcando em solo nipônico, ambos terão que enfrentar as mesmas circunstâncias ameaçadoras que podem ter vitimado seu mestre, ao passo que se deparam com uma comunidade de cristãos orientais que lutam para manter sua fé em segredo e poder (sobre)viver mais um dia.

Com a trama se passando por volta do século XVII e envolta em mistérios e perigos, Scorsese é hábil ao criar uma atmosfera de tensão permanente, presente desde os primeiros minutos. Ele nos coloca na posição dos protagonistas, enxergando o cenário recém-descoberto com o mesmo fascínio aterrorizante que Rodrigues e Garupe. Neste sentido, é interessante notar o papel do competente Rodrigo Prieto, diretor de fotografia que já fez parceria com Martin Scorsese em “O Lobo de Wall-Street” (2013) e, aqui, trabalha com eficiência a alternância de uma estética sóbria, de tons dessaturados e coberta por uma névoa constante que parece pesar sobre os ombros dos personagens, e uma composição de matiz mais chapada, que reforça o lado exótico deste local até então inexplorado e das pessoas que ali vivem. Planos plongée (180 graus de cima para baixo) e ângulos inclinados nesta perspectiva também são usados com razoável frequência, evocando a continuada presença da ausência divina ao redor daqueles indivíduos.

Em que pese o lado visual muito bem construído, não só pela fotografia de Pietro, mas também pela direção de arte, que imagina e recria com maestria os figurinos e todo o cenário do período, o grande destaque da obra é mesmo sua “big picture”: os temas propostos e as questões discutidas pelo roteiro, não só em termos de conteúdo, mas também de forma. É aqui que encontramos a essência do cinema de ‘scorsesiano’; a fé em contraponto com a dúvida, os personagens fundamentalmente humanos, complexos e em constante conflito, a reflexão maior colocada de modo sutil e sensível, sempre sob um ponto de partida terreno, de fácil conexão com o espectador do lado de cá da tela. Essa, creio, é a virtude que mais difere um bom cineasta dos gênios: a capacidade de comunicar e discutir grandes tópicos da maneira mais elegante e abrangente possível.

Não, esta não é a melhor realização de Scorsese, muito menos é uma obra perfeita. Com problemas de ritmo, especialmente do miolo do segundo ato até a virada para o terceiro, fica a nítida sensação de que o filme poderia ter, tranquilamente, uns 30 minutos a menos. Novamente o diretor encontra dificuldades para aparar algumas arestas narrativas e tornar a sua história mais concisa, algo que também é flagrante em seu último longa. O problema não é nem o ritmo em si, que sim, é lento, cadenciado e pode desagradar um ou outro espectador mais agoniado, mas a forma como alguns problemas se sucedem repetitivamente. Um conflito ou ilustração que poderia muito bem aparecer só uma ou duas vezes, aparece três, quatro, cinco, martelando uma ideia que já havia ficado bastante clara no desenrolar da trama (confissões, traições, a própria perseguição dos japoneses aos cristãos, etc), o que pode acabar por tornando a experiência geral de assistir ao filme um tanto cansativa – afinal, são cerca de 160 minutos de projeção.

Quando acha sua batida ideal, entretanto, o longa é responsável por algumas das cenas que entram na galeria de grandes momentos da carreira do diretor e ressaltam as suas maiores virtudes, já citadas anteriormente. Em certa altura da história, por exemplo (e aqui reforço ao máximo a minha tentativa de evitar spoilers significativos), um nativo vai ser torturado/executado pelas autoridades locais por praticar sua fé cristã. Embora esteja prestes a enfrentar seu destino final da maneira mais vil e cruel possível, o homem exibe um semblante tranquilo e transmite muita paz. Ele, então, olha para Rodrigues e dispara: “Quando eu morrer, vou para o Paraíso, não é? Para que ter medo?”. O silêncio que vem em resposta é absolutamente angustiante, e Garfield é bastante talentoso para, sem dizer uma palavra sequer, demonstrar toda a inquietude sentida por seu personagem com aquele questionamento.

Aliás, é interessante também discutir o uso da palavra “silêncio” como título da obra. Silêncio de quem, para quem? É um debate no qual sobra argumentos para todos os lados, mas acredito ser isso uma referência direta aos testes de fé que são postos à todo instante no caminho do protagonista e de todos que o cercam, como a cena citada ilustra bem. Em outro caso, por exemplo, Sebastião Rodrigues se vê sozinho rezando após um momento de tensão, na mesma medida em que, num voice over narrativo (outro recurso bastante usado por Scorsese), se questiona se realmente ‘há alguém o ouvindo’, ou se ele está falando com absolutamente ninguém. Mais silêncio em resposta, dessa vez de forma muito mais escancarada e direta.

É sempre apaixonante desfrutar de uma obra na qual se colocou tanto sentimento em sua realização. Martin Scorsese mais uma vez prova (e precisava, depois de mais de 50 anos de carreira e vários trabalhos memoráveis e distintos um do outro?) ter absoluto domínio da linguagem cinematográfica, entregando um filme sensível e repleto de nuances. A fé e devoção dos personagens pode até ser colocada à prova, mas a dos cinéfilos no diretor, não. E se alguém o fizer, o Silêncio que virá em resposta será bastante diferente.

Arthur Grieser
@arthurgrieserl

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