Cinema com Rapadura

Críticas   terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016): exemplar extraordinário de estudo de personagem

As longas elipses revelam uma falha de concepção no roteiro, prejudicando o terceiro ato, bem aquém do primeiro. Entretanto, as atuações grandiosas e a direção eficaz garantem muita qualidade no primeiro grande trabalho de Barry Jenkins.

Alguns filmes preferem uma narrativa cujo conteúdo é uma sequência de eventos, outros preferem adentrar por caminhos mais estáticos e por vezes experimentais. “Moonlight: Sob a Luz do Luar” é exemplar extraordinário de estudo de personagem cuja metodologia é analisar um perfil que tem como atrativo a própria humanidade do protagonista, por vezes tratado sem nenhum senso de humanidade.

A trama é fiel à própria premissa, acompanhando a vida do protagonista em três fases. São três recortes da trajetória de uma só pessoa: primeiro na infância (Little), depois na adolescência (Chiron) e, por fim, quando adulto (Black). Afirmar que o filme é sobre sexualidade, bullying, afeto, relações humanas e/ou personalidade seria reducionista: “Moonlight” é isso e muito mais.

O roteiro elaborado por Barry Jenkins (“Medicine for Melancholy“) abraça uma tarefa ontologicamente árdua: construir uma subjetividade, um emaranhado inexoravelmente permeável às vicissitudes exógenas, mas que não afasta o conteúdo individual preconcebido. A opção do roteiro na subdivisão (explícita na montagem, inclusive) em três atos se revela uma faca de dois gumes: de um lado, facilita a verticalização no protagonista; por outro lado, empobrece o script em termos narratológicos e ofusca personagens potencialmente interessantes.

Portanto, a progressão narrativa repousa na própria personalidade de Chiron, cuja vida é exposta em parcelas, como uma biografia pouco satisfatória em termos globais. As elipses são desproporcionais, o que é mais prejudicial em relação a Black, pois o texto deixa bastantes lacunas referentes à transformação do adolescente franzino e tímido para o homem do terceiro ato. Resumidamente, o roteiro decresce em termos qualitativos na segunda metade, ainda que o drama seja sempre impiedoso – boa parte em razão da violência perene e implícita.

A escolha do elenco é irretocável, a começar pelo papel da estrela. Alex R. Hibbert (estreante como ator) encarna a inocência e a desconfiança de Little (sobre tudo e sobre todos); Ashton Sanders (“Straight Outta Compton“) imprime a raiva implosiva e a insegurança de Chiron; e Trevante Rhodes (ex-atleta e agora ator) entende bem as cicatrizes de Black. O que é mais fascinante é que os três conseguem manter o olhar introspectivo e a postura de autodefesa da personagem, convencendo o público, através dessa linearidade interpretativa, de que são realmente a mesma pessoa. Em se tratando de um estudo de personagem com elipses tão longas, isso era essencial. A situação de Kevin, único contemporâneo de Chiron que o trata bem, não é muito diferente (os três atores também conseguem manter a linearidade), porém, com evidente menor espaço.

Uma pena que os coadjuvantes não tenham espaço para desenvolvimento de seus arcos dramáticos pessoais (na prática, inexistentes). Com inteligência, o plot aproxima Little de Juan (Mahershala Ali, de “Estrelas Além do Tempo“), personagem bem humana (e que foge do estereótipo do traficante inescrupuloso) que se constitui na figura paterna que o menino precisava (e que não tinha). A boa atuação de Ali comprova que havia espaço para mais. No mesmo sentido, Janelle Monáe está irreconhecível como Teresa (e melhor que no trabalho em “Estrelas Além do Tempo”), um arauto de afeto altruísta raro na vida de qualquer pessoa. Naomie Harris (“Beleza Oculta“) faz seu melhor trabalho (o primeiro de alto nível), como a mãe de Chiron. A personagem recai em um arquétipo previsível, é verdade, mas Harris se entrega a uma atuação de momentos que impressionam, arrepiam e encantam.

Barry Jenkins tem em “Moonlight” seu primeiro grande trabalho em roteiro e direção. Como diretor, não há exagero em afirmar que ele já fez mais que muitos veteranos: sua câmera, inspirada em Iñárritu, não se acomoda, transitando em movimentações constantes (o que facilita o trabalho da montagem), como acontece já no criativo prólogo (um plano longo intenso no qual a câmera gira em torno de uma personagem). Jenkins é eficaz em cenas líricas, como a que Juan e Little estão no mar (e a câmera flutua na água, intensificando a imersão do espectador), mas também nos momentos mais dramáticos – por exemplo, quando Little pergunta para Juan e Teresa sobre um rótulo pejorativo que ele recebe sem sequer conhecer o significado (que cena tocante!).

Na mencionada cena do mar –onde grandes eventos da vida do protagonista ocorrem, metáfora flagrantemente polissêmica –, Juan conta uma história sobre a cor azul, momento em que o filme abraça essa coloração em sua fotografia, escurecendo até tons de púrpura, símbolo da solidez da identidade de Chiron. A trilha sonora do longa é erudita sem exagero, investindo em instrumentos de cordas bem agitados com notas ocasionalmente mais ríspidas, tal qual a própria fita. Como plus, vozes inconfundíveis como Caetano Veloso (em espanhol!) e Aretha Franklin.

Moonlight: Sob a Luz do Luar” não entrará para a história da sétima arte. Não são rompidos paradigmas, tampouco há inovação na linguagem. E talvez nem seja essa a sua proposta. Em tempos de intolerância e preconceito, debruçar-se sobre a vida de um indivíduo (fictício, mas certamente muito real) marginalizado significa cumprir a função transcendental do cinema, extrapolando a esfera da arte autorreferente e repercutindo na consciência social.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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