Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 31 de dezembro de 2016

Elle (2016): estoicismo à francesa

Escapando ao convencionalismo da temática que aborda, o diretor e sua protagonista constroem uma trama dinâmica, que nos impede de tirar os olhos da tela.

A França tem marcado a história do cinema, desde as origens, com obras muito peculiares na capacidade de condensar traços de sua cultura nacional com dramas humanos mais generalizáveis. Ao longo dos anos, os críticos têm tido a oportunidade de analisar suas produções, surpresos pela estabilidade de suas obras, potência de suas histórias e qualidade de seus intérpretes.

Com “Elle”, novo filme do holandês Paul Verhoeven, elementos dessa conhecida marca francesa de fazer cinema se juntam ao toque especial de um diretor consagrado por filmes violentos, especialmente no gênero de ação. De suas mãos saíram alguns dos maiores clássicos dos anos 90, como “O Vingador do Futuro” (1990) e “Instinto Selvagem” (1992). Tendo desacelerado sua produção e perdido relevância nos últimos anos, agora Verhoeven volta a fazer barulho no circuito cinematográfico com esse que já é considerado um dos melhores filmes do ano.

A figura feminina que o título indica é Michelle Lèblanc, interpretada pela maestria de sempre da atriz francesa Isabelle Huppert. Sua personagem é diretora de um estúdio de jogos de videogame (e quem gosta do tema vai pegar as referências a “The Last of Us” e outros clássicos adornando as cenas), uma mulher marcada por violências do passado e do presente, que mantém em seu entorno uma série de amigos e familiares problemáticos, sob os quais impõem jogos sádicos e torturas emocionais.

Isabelle é, há tempos, uma atriz poderosa. Muitos podem não conhecê-la, pois seu metiê é dos filmes independentes e produções pequenas, mas seus trabalhos sempre encontraram forte ressonância entre críticos e fãs. Bastante versátil, ela já brilhou em dramas penosos, como “A Professora de Piano” (2001), de Michel Haneke; histórias mais leves e disruptivas, como “A Visitante Francesa” (2012), do sul-coreano Sang-soo Hong; e até musicais tolos, como “Oito Mulheres” (2002), de François Ozon. Prolífera, sua média de trabalho às vezes chega a oito filmes por ano, mas ainda que sua performance sempre se mantenha num bom patamar, é de tempos em tempos que a atriz se supera, entregando uma personagem que chacoalha audiências ao redor do mundo.

Com “Elle” é exatamente o que ela faz mais uma vez, inserindo Michelle no panteão de suas personagens inesquecíveis, ao lado de Erika do já mencionado filme de Haneke (meu preferido dela) e sua Emma Bovary da adaptação de Claude Chabrol (1991).

Embora não se negue que aspectos da força desse filme estejam também na boa adaptação de David Birke à história original de Phillipe Djian; bem como pela marca indelével de seu diretor, ainda visceral, violento e atormentado, mesmo às portas dos oitenta anos; é inconcebível pensar em outra força motriz nessa obra que não seja o desempenho de Huppert, a quem uma indicação ao Oscar (na esteira da indicação o Globo de Ouro, que lhe foi dada este ano) seria apenas justa.

Sua Michelle é patológica em cada cena, em cada fala e ato, e parece dotar o ritmo dinâmico e hiperativo dessa trama que, nas mãos de um diretor mais conservador, poderia perder muito de sua fluidez e tensão. Assim, “Elle” é um filme que se desenvolve em um só suspiro, como um susto, prendendo o espectador na cadeira do começo ao fim.

Não se perde, porém, aquele traço peculiar da cultura francesa que mencionei no começo dessa crítica. O mais intrigante de sua personagem são as reações apáticas, práticas e vazias de qualquer sentimentalismo aparente diante de todas as tragédias que lhe surgem pela vida. E bota tragédias nisso: de fato, são tantos acontecimentos com essa mulher ao longo de mais ou menos duas horas de trama, que não se espante em perguntar-se, a certa altura, se talvez Michelle não estaria vivendo seu pior inferno astral.

Sua personagem é deliciosamente salpicada por um certo estoicismo francês que já apareceu em algumas outras produções cinematográficas daquele país. É um jeito específico de lidar com a dor, a morte, a violência, a perda, que inevitavelmente surpreende a nós, brasileiros, temperados pelo sangue ibérico misturado aos emotivos italianos e outras ascendências. Assim, ver essa mulher permanecer incólume diante das violências e tragédias que sofre, ainda que como reação ela desenvolva um violento sadismo, não deixa de nos ser assustador, tal qual qualquer demônio ou monstro de um filme de terror.

Habilidoso e também humilde em fazer uma produção pequena, Verhoeven volta a tornar-se relevante no cinema, nesse filme indicado ao Globo de Ouro na categoria de produção estrangeira. Um roteiro arrasador que não nos deixa tempo para respirar, somado ao desempenho impecável de uma atriz ajudada por um bom elenco de apoio (que conta com alguns dos melhores nomes do cinema francês atual), fazem de “Elle” um típico filme francês, com todos os potenciais para conquistar o resto mundo.

Vinícius Volcof
@volcof

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