Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 19 de outubro de 2014

O Homem Mais Procurado (2014): um epitáfio digno para Phillip S. Hoffman

Adaptação de romance escrito por John le Carré pode não ser tão envolvente quanto “O Espião Que Sabia Demais”, mas certamente é uma produção mais incisiva e pungente em sua mensagem.

20141008_180859000000Gunther Bachman não é James Bond ou Ethan Hunt. Ele não é charmoso, atraente, não bebe martini nos melhores cassinos de Monte Carlo ou dorme com supermodelos após derrotar um vilão megalomaníaco em uma perseguição pelas ruas de Paris. Mas ele é um espião, tendo a missão de se infiltrar, direta ou indiretamente, em organizações terroristas ao redor do mundo.

Protagonista deste “O Homem Mais Procurado” e vivido com brilhantismo milimétrico por Phillip Seymour Hoffman, Gunther não vive em um mundo maniqueísta. Ele sabe que seu trabalho envolve quebrar a lei, enganar, mentir, trair a confiança de pessoas que ele manipulou para que acreditassem nele, mas Gunther acredita piamente que o que ele faz é para a segurança dos outros. E o custo pessoal do seu ofício se reflete em seus hábitos autodestrutivos e postura, sempre curvada, como se carregasse o mundo nas costas.

É por Gunther que mergulhamos neste mundo, que, como em todos os mundos criados pelo escritor John le Carré, não é fácil de se habitar, com Hoffman se impondo como o pilar central do longa. O diretor Anton Corbijn nos entrega uma Hamburgo fria e melancólica e uma atmosfera onde mesmo os relacionamentos mais próximos são mergulhados em um clima de ambiguidade e tensão, justamente por serem as principais ferramentas a serem exploradas pela equipe de Gunther.

O roteiro de Andrew Bovell é centrado na chegada ilegal de Issa Karpov (Grigoriy Dobrygin) a Hamburgo. Acusado de terrorismo pelos russos, em uma investigação que incluiu um “interrogatório” que durou 24 horas, Issa está na Alemanha em busca de uma herança que teria sido deixada pelo seu pai.

Mas sua presença começa uma guerra entre as agências de inteligência de Gunther e de seus rivais, que incluem o brutal Dieter Mohr (Rainer Bock) e, obviamente, os interesses americanos, representados pela dúbia Martha Sullivan (Robin Wright). Em meio a isso tudo, a idealista advogada Annabel Richter (Rachel McAdams) e o banqueiro Tommy Brue (Willem Dafoe), que tentam ajudar Issa em sua nova vida, acabam no fogo cruzado entre os envolvidos.

Issa representa os terrores presentes e passados dos ocidentais, um descendente muçulmano de um oficial corrupto da antiga União Soviética. Esse rapaz alquebrado e confuso é visto como um alvo a ser derrubado por Mohr e como um meio para um fim pelo pragmático Gunther, que enxerga nele um modo de se aproximar de um alvo maior, o filantropo Abdullah (Homayoun Ershadi), propositadamente pouco explorado – embora Jamal (Mahdi Dehbi), figura próxima a ele, ganhe certo destaque, incluindo duas cenas bastante emocionais com o personagem de Hoffman.

A questão sobre a inocência ou culpabilidade de Issa é resolvida ainda no segundo ato da produção, o que torna os eventos que se desenrolam a partir deste ponto ainda mais tensos. O relacionamento entre ele e Annabel também ganha contornos desenvolvidos por meio da química sutil entre Dobrygin e Rachel McAdams, que vive a personagem que está mais próxima da audiência, servindo quase como o avatar do público dentro daquele universo. Aliás, o pouco conhecido ator russo merece palmas por seu desempenho aqui, em uma atuação minimalista, mas poderosa, explorando o estado de miséria física e mental no qual Issa se encontra durante a narrativa, bem como a dualidade inerente às suas origens.

É quase impossível não lembrar de Claire, da série “House of Cards”, toda vez que Robin Wright surge na tela. Vivendo a diplomata Martha Sullivan, Wright surge delicada, prestativa e intimidadora, tudo ao mesmo tempo, mesmo em cenas mais intimistas, como no nada glamouroso jantar de Martha e Gunther. Já o Dieter de Rainer Bock antagoniza o protagonista – e ao público – desde sua entrada em cena, tornando-se uma figura antipática óbvia. Suas atitudes sem remorso (bem como seu figurino sempre elegante e até intimidador) fazem um contraponto perfeito para com Gunther, homem que claramente sofre com as repercussões de seus atos cruéis, vistos por ele como necessários dentro do “mundo real” onde vive.

A participação de Willem Dafoe como o banqueiro Tommy Brue também é digna de nota, especialmente por este ser um homem falho, mas comum, figuras atípicas na filmografia do versátil ator. O modo como Brue tenta esconder sua óbvia atração por Annabel e sua reação ao ver tal sentimento ser jogado e usado por Gunther é um dos momentos mais marcantes da projeção.

Isso porque, ao contrário do que vemos nos blockbusters do gênero, os envolvidos aqui sabem que as “setpieces” não são as (quase) inexistentes cenas de perseguição ou tiroteios entre mocinhos e bandidos, mas sim os diálogos entre os personagens, que sempre deixam marcas entre eles mais profundas do que qualquer bala. Os dolorosos gritos de frustração dados por Gunther no terceiro ato falam mais alto do que qualquer explosão em IMAX.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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