Cinema com Rapadura

Críticas   segunda-feira, 06 de outubro de 2014

Os Boxtrolls (2014): caixas, crianças, queijos e stop-motion

Se equilibrando entre o carisma de seus personagens, a diversão de suas piadas e a seriedade dos temas tratados no subtexto do seu roteiro, este terceiro longa-metragem da Laika é mais um acerto para o estúdio, especializado em animações em stop-motion.

imageA Laika é uma companhia conhecida por suas ótimas animações em stop-motion que, mesmo voltadas para o público infantil, se mostram uma deliciosa mistura de doçura e fantasia sombria. Depois de “Coraline e o Mundo Secreto” e “ParaNorman”, a empresa apresenta o divertido “Os Boxtrolls”, produção dirigida pela dupla Graham Annable e Antony Stacchi e baseada no livro “A Gente é Monstro!”, de Alan Snow.

Na vitoriana Pontequeijo, tudo gira em torno de… bom, queijo. Além dessa ligeira excentricidade, a cidade ainda é habitada por Boxtrolls, criaturinhas humanoides pacíficas que usam caixas como disfarce para se esgueirem no meio da noite e surrupiarem os materiais que precisam para construir suas bugigangas.

Ovo, um jovem órfão criado pelos Boxtrolls sai ao resgate de seus amigos, aprisionados pelo ambicioso exterminador Surrupião e seus capangas. Em meio a esta jornada, o garoto, que não se reconhece como humano, acaba conhecendo a mimada garota Winnie, filha do governante local, e descobrindo um segredo sobre sua verdadeira identidade.

Os roteiristas Adam Pava (“A Mansão Foster Para Amigos Imaginários”) e Irena Brignull entregam uma fita que, por trás de seu mundo fabuloso, revela uma série de metáforas incrivelmente adultas. Seus personagens tem motivações e arcos que, mesmo sob camadas de exageros, revelam-se incrivelmente complexos.

Temos o relacionamento entre Ovo e seu “pai”, o boxtroll Peixe, resumido de forma concisa e econômica através de uma bela montagem que mostra o carinho que um sente pelo outro (até mesmo o peixe na caixa do boxtroll remete a uma gravata, mostrando a posição paternal deste último). Em seguida, o longa explora a relação disfuncional entre Winnie e seu pai, um governante e genitor sem a mínima noção de prioridades e cuja filha é uma menina que, mesmo reconhecidamente mimada, é carente de carinho ao extremo.

Os dois infantes se vêem obrigados a confrontar seus responsáveis, exigindo uma identidade ou cuidados. Nisso, acabam sendo agentes da mudança em sociedades alienadas, seja pela arrogância aristocrática ou pelo medo.

Finalmente, Archibald Surrupião se mostra um antagonista muito bem desenvolvido. Preso em uma sociedade que o despreza (cuja maior representação de plutocracia jaz na degustação de queijos pela elite local – sendo o vilão alérgico a lactose), o esfarrapado Surrupião se mostra capaz de qualquer coisa para se tornar um dos respeitados “chapéu branco”, não se furtando de roubar, mentir ou matar para alcançar seus objetivos, colocando a cidade em um estado permanente de sítio e destruindo a imagem dos carismáticos Boxtrolls para se fazer importante dentro de Pontequeijo, levando inclusive seus habitantes a cantarem a plenos pulmões canções de ódio aos seus habitantes mais “diferentes” usando de boatos e mentiras para incitar o ódio e o preconceito (coisas que, obviamente, não acontecem na vida real).

Os capangas acabam se mostrando como representações do id, ego e superego, travando ligeiras discussões sobre a luta entre o bem e o mal. Esses debate sobre a natureza dos conflitos travados, a insanidade da própria cidade (cujo governante prefere comprar um queijo gigante a construir um hospital infantil) e as próprias jornadas das crianças dão um sabor todo especial a este longa, mas sem jamais esquecer das piadas e das cenas de ação, que acontecem sempre para completamentar a trama, nunca o contrário.

Visualmente, o longa consegue ser real e surreal ao mesmo tempo, algo ressaltado pelo 3D e pela belíssima fotografia da produção (o ataque de Surrupião à casa dos Boxtrolls é quase uma pintura em movimento). O fato das figuras que vemos em cena serem, de certo modo, tangíveis, cria uma sensação de proximidade entre o público e os personagens, por mais cartunescas que sejam suas aparências. E é nessa dualidade entre o físico e o imaginário, entre a seriedade e as risadas que os filmes da Laika continuam a fascinar crianças e adultos igualmente. Recomendado!

P.S.: durante os créditos, há uma hilária cena onde os capangas de Surrupião refletem de maneira deveras metalinguistica sobre eles mesmos.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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