Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 03 de fevereiro de 2014

Eu e Você (2012): um drama psicológico muito além da superficialidade

Dinâmica entre os personagens e direção segura garantem o sucesso deste aguardado retorno de Bertolucci aos cinemas.

Eu e VocêBernardo Bertolucci é um dos diretores mais celebrados de seu tempo. Reconhecido internacionalmente por crítica e público, o italiano dirigiu filmes icônicos e que marcaram época, como “O Último Tango em Paris” e “O Último Imperador”, sendo premiado com este último com o Oscar e o Globo de Ouro de melhor filme e de melhor direção. Há quase dez anos sem filmar por problemas de saúde que o deixaram em uma cadeira de rodas, desde “Os Sonhadores“, de 2003, eis que o diretor retorna com este ótimo drama psicológico, ‘’Eu e Você’’, investigando a fundo os caminhos tortuosos pelo qual passa a juventude contemporânea.

É bastante louvável, portanto, que um diretor já de idade relativamente avançada e extremamente consagrado como Bertolucci, tendo passado pelos problemas que passou nos últimos anos, ainda encontre energia e curiosidade o suficiente para tratar de temas tão atuais e complicados como os desse filme: drogas, introspecção, conflitos familiares etc. Realização que só um diretor com o talento e a experiência que ele possui poderia alcançar.

Roteirizado pelo próprio Bertolucci em parceria com Umberto Contarello e Francesca Marciano, tendo como base o romance de Niccolò Ammaniti, “Eu e Você” conta a história de Lorenzo, um introvertido e anti-social adolescente de 14 anos que, aproveitando a oportunidade de um álibi, uma excursão da escola, pretende isolar-se do mundo no porão de seu prédio durante uma semana. Tudo ocorre mais ou menos como planejado até que sua meia irmã mais velha, Olívia, uma jovem com sérios problemas de dependência química, aparece pedindo ajuda para dividir o local com ele.

É justamente na interação entre os dois que o filme encontra sua força. Ambos são filhos do mesmo pai, mas de mães diferentes. As duas se odeiam. A mãe de Olívia culpa a mãe de Lorenzo pela crise no relacionamento entre os dois. Esta relação, aliás, acaba por ser um dos únicos problemas do longa. O conflito familiar é pouco explorado, o que exige do espectador uma imaginação além do conveniente, algo que devia estar contido dentro da trama. Mas, ainda assim, não é nada que comprometa significativamente o resultado final.

Há muito tempo sem se verem, os jovens desenvolvem uma relação de afetividade e cumplicidade curiosa e surpreendentemente tocante, criando uma realidade particular apenas deles.  Neste sentido, a abordagem de Bertolucci na direção é precisa. Os ângulos inclinados, recurso utilizado pelo diretor de modo corriqueiro durante toda a projeção, ilustram de maneira bastante inteligente a vida daqueles personagens, sempre torta, desajustada e à procura de estabilidade. Tais escolhas dão coesão à narrativa, nunca deixando que ela descambe para o lado do melodrama e da previsibilidade.

Vale destacar também o excelente trabalho de atuação do estreante Jacopo Olmo Antinori e da bela Tea Falco, que conseguem transmitir de forma bastante econômica, sem exagerar na dose, ainda que, por vezes, isso seja necessário, toda a angústia que carregam em suas vidas. A força do olhar distante, vazio e frio de Lorenzo contrastando com a expressão vivaz e sedenta de Olívia resulta em uma dinâmica poderosa, que leva a narrativa a um patamar diferenciado.

Falando em contrastes, não deixa de ser curioso que Lorenzo exerça um verdadeiro fascínio pelo formigueiro artificial que carrega consigo. O garoto passa horas observando a rotina das formigas, a maneira coletiva como elas se organizam, a divisão das tarefas e a ajuda mútua para o bem da “sociedade”. É quase como se o próprio Lorenzo quisesse, de alguma forma, aprender com isso, compreender essa visão coletiva de mundo tão distante da sua realidade e tornar-se uma pessoa mais sociável.

A fotografia de Fábio Cianchetti ilustra, por meio de ambientes fechados, estreitos e escuros, o verdadeiro ‘’casulo social’’ em que se encontram os irmãos. Os enquadramentos frequentemente fechados, em primeiro plano, dão um tom claustrofóbico e agoniante que é extremamente bem-vindo, uma vez que, além de estarem no porão de um prédio, o que já é naturalmente claustrofóbico, os próprios personagens são prisioneiros de si mesmos, de seus vícios e das convenções sociais que os cercam.

Assim, “Eu e Você” nos conta uma história densa, tensa e intensa, que “flutua” sobre diversos temas contemporâneos, não só da juventude, mas da própria condição existencial humana. Tudo isso com uma abordagem atual, simples, precisa e inteligente. Afinal, não é à toa que seu diretor tenha reconhecimento que tem. Que este seja apenas o primeiro passo do que, até então, promete ser um retorno triunfal.

Arthur Grieser
@arthurgrieserl

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