Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A Caça (2012): a recorrente descrença na humanidade de Thomas Vintenberg

Longa dinamarquês conta uma história simples e forte sobre um erro incorrigível que afeta para sempre a vida de um homem digno.

A CaçaEm 1998, o dinamarquês Thomas Vintenberg lançou a primeira e principal obra integrante do Dogma 95, movimento cinematográfico internacional que prezava por uma restrição técnica e narrativa em prol de um cinema mais barato, cru e de compromisso exclusivo com uma boa história. Em “Festa de Família”, o aniversário de um patriarca é utilizado para revelar toda a descrença do diretor na humanidade, repleta de hipócritas e interesseiros. Quinze anos mais tarde, é possível ver que Vintenberg ainda permanece pessimista. Pelo menos é o que demonstra em seu mais novo trabalho, o doloroso “A Caça”.

As semelhanças entre os filmes não param por ai. Novamente o ambiente familiar domina. Mas não temos apenas um, e sim vários, compondo uma pequena e gélida cidade da Dinamarca. É lá que Lucas (Mads Mikkelsen) atua como professor em um jardim de infância. Querido e conhecido por todos da localidade, ele tem sua chegada no trabalho festejada pelos alunos diariamente. No entanto, todos se voltam contra ele quando uma falsa denúncia de abuso sexual em uma criança, que tem ele como único suspeito, se espalha. Cabe a Lucas, então, suportar as acusações e defender-se contra o ataque dos ditos “mantenedores da moral e dos bons costumes”.

Na verdade, estamos diante de um filme sobre a luta pela dignidade. Não que Lucas a perca, pois o filme jamais deixa dúvidas sobre sua inocência no escândalo que comove a cidade. Mas diante dos olhos alheios, ele torna-se um criminoso, quase um monstro, acusado de um crime considerado gravíssimo pela justiça e imperdoável  pela sociedade. E é ela, a sociedade, novamente, o principal foco de Vintenberg. Advém dela as manifestações mais contraditórias, as atitudes mais animalescas e as reações mais revoltantes contra alguém considerado, há poucos momentos, um grande amigo.

O cineasta, porém, exibe-a inicialmente em sua forma pacificadora, dando atenção às amizades que o personagem principal mantém (com direito a brincadeiras em lagos congelantes) e a forma acalentadora com que é tratado em seu emprego. Mas não temos aqui exageros ou maniqueísmo. Vintenberg, que também escreve o roteiro ao lado de Tobias Lindholm, com seu ritmo pausado e estilo realista, não permite idealizações. E assim ele caminha para além da mentira que é espalhada, trazendo uma sensação de naturalidade na revolta da opinião pública, mas sem nunca deixar de assustar pela maneira brusca com que boa parte dela vira as costas para Lucas sem nem sequer olhar pra trás.

Retirando a maquiagem de seus personagens aos poucos, o cineasta vai revelando a sua essência, ao mesmo tempo em que o polêmico caso faz-nos refletir sobre qual seria a nossa atitude. Defender o personagem principal deve ser a resposta mais fácil, afinal acompanhamos sua rotina e conhecemos sua índole por completa. Com notável delicadeza, o roteiro mostra as diversas vertentes de Lucas: o professor, amoroso e dedicado; o homem honesto, mas que deixa-se seduzir por uma companheira de trabalho; e o pai, afastado do filho após um divórcio turbulento. A partir delas, o filme permite-nos afeiçoar a ele e sentir suas dores a cada revés.

E eles não são poucos, podendo vir de forma branda ou não. Tudo porque a história de “A Caça” nos surpreende a cada minuto, principalmente pelo detalhismo do roteiro e pela direção segura, que evitam gerar comoções precipitadas, como na prisão de Lucas, para pouco depois exibir um conflito bastante chocante. E eles se repetem, principalmente no terceiro ato da trama, dando origem a sequências intensas, tanto física quanto psicologicamente. Até mesmo o desfecho, quando dá a impressão de um encerramento “bonitinho” demais, traz o seu, contribuindo para revelar ainda mais a desesperançosa essência da sociedade de Vintenberg.

Mas apesar do incrível trabalho do cineasta, a excelência do resultado final não seria alcançado sem a contribuição do elenco, especialmente de três atores. O primeiro deles é a pequena Annika Wedderkopp, intérprete de Klara, a garota que inventa a mentira. Sua naturalidade diante da câmera só cresce ao longo da projeção. No entanto, ela jamais perde a inocência que é tão essencial para o desenrolar da história. O mesmo não se pode dizer de Theo, o pai dela, papel de Thomas Bo Larsen. Diante de olhos tão confusos, ele faz o público sentir um misto de revolta e pena.

Já pelo Lucas de Mads Mikkelsen sentimos um crescente carinho. É também por causa de sua performance estupenda, devidamente premiada no Festival de Cannes em 2012, que somos conduzidos para dentro dessa trama tão polêmica e permanecemos lá, até mesmo bem depois dos créditos finais, para tentar protegê-lo de alguma forma, em uma certificação insuperável de um trabalho interpretativo dos melhores, parte de um filme a ser visto e revisto intensamente.

Darlano Didimo
@rapadura

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