Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 28 de maio de 2013

O Abismo Prateado (2011): um agora urbano, mas ainda melancólico Karim Aïnouz

Livremente adaptado da música “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque, filme faz retrato silencioso e cru sobre o fim repentino de uma etapa da vida de uma mulher e o começo de outra.

O Abismo PrateadoO barulho de ondas quebrando na areia, ainda sobre a tela negra, já demonstra que Karim Aïnouz deixou o seco interior nordestino. O sertão, cenário de duas pequenas obras-primas de sua parte, “O Céu de Suely” e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, dessa vez é substituído por uma bela cidade litorânea, talvez a mais bela de todas: o Rio de Janeiro. É lá, naquela metrópole de gente bonita e feliz, que o diretor cearense conta mais uma de suas viscerais histórias, talvez a mais universal de todas as que já contou. O fim abrupto de uma etapa na vida de uma mulher e o início de uma nova é o tema deste sensível “O Abismo Prateado”.

E tudo acontece num longo dia. Violeta (Alessandra Negrini) e Djalma (Otto Jr.) o iniciam com uma aparente habitual transa. O banho separado, assim como o café da manhã, no entanto, revelam que a harmonia entre eles não é das melhores. Na verdade, Djalma não mais suporta viver ao lado da esposa. Nem o filho que possuem juntos o segura mais. E parte, deixando apenas um recado no celular dela. Depois de ouvi-lo, Violeta desaba. Não sabe o que ocasionou tudo aquilo e o que fazer. A partir de então, vagueia por um Rio calmo e respeitoso, buscando respostas e força para suportar toda aquela repentina dor.

Livremente adaptado da música “Olhos nos Olhos”, escrita por Chico Buarque, a trama possui o mesmo ritmo cadenciado e doloroso da canção. Como de hábito em seus trabalhos, Aïnouz despe seus personagens em todos os sentidos. Não há qualquer máscara social, roupa ou maquiagem que escondam o que Djalma e, especialmente, Violeta sentem. Ela está crua, completamente despida em frente ao público. Os motivos para o fim do casamento podem até permanecer no campo das possibilidades, mas não há como negar o seu desespero, suas dúvidas, seus arrependimentos e, posteriormente, sua vontade de recomeçar.

A câmera estática e apreciadora de Aïnouz continua a valorizar as minúcias de suas mulheres, principalmente em seus momentos de solidão e silêncio, o que o roteiro de Beatriz Bracher sabe como destacar. Os diálogos, na verdade, pouco dizem algo de significativo, especialmente na primeira hora de filme, exatamente quando a história centra-se unicamente em sua personagem principal. Exibindo gradativamente o processo de aceitação (ou não) da nova vida por parte de Violeta, o longa é dono de uma sensibilidade aguçada e única, mesmo dispensando quase que completamente a trilha sonora e mesmo abordando uma temática já muito antes explorada pelo cinema nacional.

Sua jornada, apesar de ser isolada, jamais é maçante. A curta duração da obra, outra característica dos trabalhos de Aïnouz, contribui para a sensação, mas é a reflexão da instabilidade mental da personagem principal que a faz minimamente dinâmica, migrando de casa para o aeroporto (passando por doloridas viagens de táxi) e de motéis para a praia. Mas quando sua solidão chega temporariamente ao fim, um novo filme parece ter início. Libertando-se completamente da canção em que se inspira, a história introduz novos coadjuvantes, desviando-se de sua essência e perdendo parte de seu impacto emocional.

Karim Aïnouz também transforma o Rio de Janeiro em personagem. Explorando locações turísticas sem o olhar estranho do “estrangeiro”, poucas vezes a cidade maravilhosa pareceu tão aconchegante, tão comum e ainda assim de beleza diferenciada. O filme também faz a capital carioca falar, captando seus diversos sons. Do já citado quebrar das ondas ao irritante maquinário de um prédio em construção, os barulhos estão sempre presentes, na introspecção ou na descontração, dando um ar extra de realismo a essa história tão verdadeira, algo que o recente “O Som ao Redor” explorou com ainda mais louvor.

Outro ponto alto de “O Abismo Prateado” é a interpretação de Alessandra Negrini. Firmando-se como um das principais atrizes do cinema nacional, ela dá à Violeta a fraqueza e a força exatas de uma mulher moderna, que fica sem chão ao ver o marido partir, mas que sabe se reerguer com discrição. E com essa mensagem positiva, que jamais soa clichê, Aïnouz entrega um ótimo filme, apesar de pouco parecer seu. Talvez seja muito universal para o padrão regional que nos acostumou. Mas ainda assim, há muito com que se identificar com a trama de uma mulher que tem que lidar sozinha com o abandono de seu companheiro de longos anos ao ouvir dele, por telefone, um repetitivo e incisivo “eu não te amo mais”.

Darlano Didimo
@rapadura

Compartilhe