Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 07 de abril de 2013

Pietá (2012): Kim-Ki Duk subverte a moral das coisas em grande obra

Ganhador do Leão de Ouro em Veneza no ano passado, longa coreano subverte a obra de Michelangelo entre os discursos freudianos e econômicos de Kim-Ki Duk.

Pietà1Em “Pietá”, Gang-Do é um funcionário (leia-se: capanga) do submundo da agiotagem na periferia de Seoul. Com a conduta patológica de um perfeito sociopata, o jovem se presta aos serviços sujos que lhe convém ao ofício. Assim como “Abutres” de Pablo Tropero, o novo filme de Kim Ki-Duk (“Casa Vazia”) se aproxima de um discurso político-econômico quando explora as mazelas e decrepitudes do regime capitalista (particularmente na periferia da capital sul coreana, onde a especulação imobiliária e a marginalização do pobre são subtextos claramente explorados pelo cineasta), ao passo que conduz uma história genuína sobre personagens.

Vivido com esmagadora frieza e indiferença por Jung-jin, Gang-Do é o cobrador de dívidas. Ele está constantemente invadindo casebres/oficinas de trabalhadores braçais, trazendo consigo apenas duas opções aos miseráveis que optaram pela saída da agiotagem: ou paga ou fica aleijado. Ao aleijar suas vítimas – com seus próprios instrumentos de trabalho, diga-se de passagem –, o jovem confisca o direito de revogar o dinheiro de seus seguros de vida por invalidez. Tudo transcorre como o previsto, até que uma mulher (vivida pela incrível Min-soo) alegando ser sua mãe invade seu apartamento e, progressivamente, sua vida.

Não é preciso demandar muito esforço – e isso não é, de modo algum, um demérito – para perceber que o roteiro assinado pelo próprio cineasta escancara uma dinâmica extremamente freudiana entre mãe e filho. Desamparado, o filho assume inicialmente uma posição hostil na qual incesto e agressão física são cartões de visita, enquanto a mãe assume posição de pecadora e se submete à flagelação. “Eu quero entrar de novo!”, diz Gang-Do a sua suposta mãe enquanto insere o braço em sua vagina. Machucá-la, puni-la por não haver cumprido a função materna. Kim-Ki Duk brinca com as referências edípicas (vide a cena da corrente com o cadeado mais ao fim da projeção).

A sucessiva infantilização do filho e a munição de poder que é investido na figura da mãe leva Gang-Do a questionar a validade do labor que exerce. É a partir dessa virada narrativa, em que o jovem violento é domesticado, sofre com as consequências de seus erros e passa a ser perseguido pelo passado (composto de fantasmas e indivíduos de membros mutilados) – que o cineasta sul coreano funde seu complexo discurso psicanalítico com argumentos de crítica socioeconômica e revela as verdadeiras intenções de seus personagens.

O apartamento e as roupas (que dão ideia de repetição e rotina) de Gang-Do às vezes dizem mais sobre sua personalidade do que seus próprios atos. O trabalho de direção de arte de “Pietá” é de eficiência ímpar ao construir uma evidente dicotomia entre o universo particular do protagonista (seu apartamento austero, acinzentado, sujo de sangue, porém luxuoso para os padrões periféricos) e a geografia geral da cidade onde vive, com prédios mal-acabados, terrenos especulados e casebres de manufaturas em condições paupérrimas, um cenário de repressão ideal à crítica proposta por Ki Duk. O sentimento evocado pelas imagens de tom quase sempre contemplativo do longa variam da angústia ao mais puro e sublime suspiro.

Pietá, a escultura homônima de Michelangelo, é um retrato de Jesus Cristo morto nos braços da virgem Maria. A escultura secular diz muito sobre o filme. O cineasta subverte a moral das coisas, Jesus não opera milagres em aleijados, aqui ele é o agiota que os fere e os mutila; Maria não é a virgem imaculada e sim uma velha pecadora que não pôde perdoar o passado. Kim-Ki Duk transforma o belo em feio, o inocente em culpado e o nobre em vingança nesse que é, desde já, o melhor filme de sua carreira.

Pedro Azevedo
@_pedroazevedo

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