Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 19 de novembro de 2011

A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 1 (2011): filme explora os limites da comédia involuntária

Em meio a uma brega direção de arte, péssimas atuações e lições de moral torpes, o único meio de encarar os quase 120 minutos de projeção do quarto filme da "saga" é embarcar no humor acidental que o filme entrega.

Até o seu terceiro capítulo, a franquia “Crepúsculo” havia arrecadado cerca de US$ 1.8 bilhões nas bilheterias mundiais, certamente fazendo jus ao rótulo de fenômeno. No entanto, após assistir “Amanhecer – Parte I”, esse número me deixou extremamente consternado. Tal preocupação não é por conta da proporção inversa entre os números supracitados e a qualidade dos filmes, nem mesmo por quatro bons diretores terem passado pela franquia e nenhum deles ter feito nela um trabalho digno de nota. O que é deveras assustador é o fato de que milhões de adolescentes consideram os personagens daquelas histórias figuras que merecem admiração.

Parece necessário alertar que o presente texto se trata de uma análise DO FILME que, como adaptação de uma obra literária, não necessita do apoio do livro para ser entendido. Neste quarto episódio, com o iminente casamento de Bella (Kristen Stewart) e de seu amado vampiro Edward (Robert Pattinson), o lobisomem Jacob (Taylor Lautner) percebe que perdeu aquela que considera ser o amor da sua vida. Após o casal finalmente consumar sua relação em sua lua de mel no Rio de Janeiro, Bella acaba engravidando misteriosamente, colocando-a em perigo de morte dada a natureza excepcional da gravidez e sob a mira dos licantropos do grupo de Jacob, que vêem na vindoura criança uma ameaça futura.

Pelo terceiro texto seguido (leia as críticas de Crepúsculo, Lua Nova e Eclipse), digo que a “heroína” da trama, Bella (Kristen Stewart), precisa urgentemente de tratamento psiquiátrico, sendo que aqui isso fica absurdamente claro. Nos três filmes anteriores, Bella não transou com Edward justamente porque a força sobre-humana do vampiro poderia quebrá-la ao meio, ficando estabelecido que a garota precisaria ser transformada para que os dois pudessem finalmente se entregar ao coito (presumivelmente) intravagínico.

No entanto, Bella “encara” Edward mesmo sem se tornar vampira, acontecendo justamente o que fora previsto: a garota amanhece repleta de hematomas e arranhões. Isso constitui crime de lesão corporal, com o agravante de que o agressor é marido da vítima! Considerando que o fato ocorreu no Brasil, o vampiro seria enquadrado no Art. 5º., inciso II da Lei 11.340, a popular Lei Maria da Penha!

Edward já era um “caçador experiente” desde antes da avó de Bella nascer (vide seu flashback presente no primeiro ato do filme), com seus caninos passando longe de serem “virgens”. Ou seja, o “herói romântico à moda antiga” de milhões de garotas não passa de um agressor de mulheres e um assassino serial confesso!

Mas não é só isso. Confirmando o conservadorismo extremo de Stephenie Meyer sobre relações afetivas, apesar de estar em uma gravidez de risco que CLARAMENTE a está matando, Bella resolve prosseguir com esta, com sua única chance de sobrevivência sendo uma eventual transformação em vampira após o parto. Ou seja, de todo modo, a jovem morrerá se tiver a criança. Lidar com um tema tão importante e controverso como esse apenas como mais um tópico para o complexo auto-destrutivo de Bella ou para o machismo incontrolável de Edward (que simplesmente ordena que a esposa não tenha a “coisa“, como ele se refere) é uma ótima lição para as nossas massas adolescentes, pessoal!

Jacob, que vinha sendo a única figura com a cabeça mais ou menos no lugar até esse ponto, ganha uma nova (e criminosa) paixão. Revelar mais sobre isso seria entregar o final do longa, mas este fato nos leva a um interessante ponto: embora o lançamento de “Crepúsculo” nos cinemas tenha se dado após a publicação do último livro (justamente aquele no qual este “Amanhecer – Parte I” é baseado), é aqui que temos a certeza de que os produtores, a roteirista Melissa Rosenberg e a própria Meyer não sabiam qual história estavam contando ou mesmo como conduzi-la de maneira coesa nas telas do cinema.

Digo isso porque um fator importantíssimo para o arco de Jacob e para a resolução deste longa, o chamado imprinting, teve de ser martelado na cabeça do espectador várias vezes durante a fita. O conceito já havia sido citado anteriormente, mas não tinha sido nem de longe estabelecido de maneira clara. Isso prova que, mesmo após tantos filmes, a apresentação daquele universo ao público não fora feita de maneira razoável.

As explicações sobre o imprinting acontecem várias vezes durante a projeção, inclusive com o clímax tendo de ser interrompido para que um dos personagens tenha de detalhar algo relacionado ao assunto, massacrando um dos princípios básicos do cinema que é o de mostrar, não contar. Da maneira colocada no filme, o imprinting se trata de uma submissão amorosa de cunho romântico entre duas pessoas, na qual a pessoa se entrega totalmente para a outra, beirando quase a obsessão, o que torna a situação de Jacob no final do filme pior ainda.

A falta de estrutura da história geral dos quatro filmes ainda é ressaltada pelo aparecimento repentino de uma companheira amorosa do falecido vampiro Laurent (aquele que tentou matar Bella e apareceu nos dois primeiros episódios da série) no meio do casamento de Bella como convidada, algo que só faz menos sentido do que chamar essa franquia de “saga”.

Deixando um pouco para lá os arcos “excêntricos” (eufemismo), a condução da história pelo bom cineasta Bill Condon deixa bastante a desejar. Colocando de lado a deliciosa ironia de que o homem que conduziu “Kinsey – Vamos Falar Sobre Sexo” não conseguiu mostrar na tela uma cena de sexo prometida há três filmes, Condon parece reconhecer o nível das produções anteriores, não mostrando interesse em fazer algo muito melhor. Até mesmo a cena do parto foi mais leve do que o esperado, não sendo tão pesada quanto o próprio filme colocava que seria.

Claro que o orçamento de US$ 110 milhões se mostra nos efeitos especiais, os melhores da série até aqui. Mas o ritmo da projeção é tão truncado que até mesmo as elipses parecem forçadas, com os próprios personagens tendo de dizer quanto tempo entre as cenas se passou. Logo no começo da fita temos um exemplo disso quando, com 30 segundos de filme, Jacob tira sua camisa furiosamente (que surpreendente!) e desaparece por três cenas, para que depois Bella tenha de nos explicar que ele havia sumido há duas semanas.

Note-se ainda que a direção de arte consegue, em alguns momentos, ultrapassar os limites da breguice, notadamente na cena de sonho que antecede o casamento. Muitas cenas que deveriam ser dramáticas acabam ganhando contornos de comédia involuntária. Cito aquela em que os lobos conversam telepaticamente entre si, a que Edward descobre a gravidez de Bella, a sequência em que (de novo!) Jacob “aquece” a protagonista na frente de Edward após a menina dizer que está com frio e o momento no qual o “galã” começa a pesquisar sobre a cria híbrida dele e de sua esposa por meio do… Yahoo! Bom, considerando que Bella havia descoberto a natureza vampiresca do amado pela internet, ao menos se manteve alguma consistência aí.

As atuações também não estão muito melhores. A melhor do trio principal, Kristen Stewart se apresenta surpreendentemente bem como Bella, demonstrando a fragilidade da personagem durante a gravidez de maneira efetiva, com auxílio de um excelente trabalho de maquiagem, embora tal conjunto esteja a serviço de uma mensagem longe de ser merecedora de méritos. Por sua vez, Taylor Lautner continua sabendo tirar a camisa de maneira impetuosa muito bem, enquanto Pattinson mantém sua atuação “boneco de cera”, raramente mostrando alguma expressão facial ou mesmo mudando seu tom de voz blasé.

O destaque do elenco é Billy Burke, cujo Charlie Swan tem seu ápice durante o discurso de casamento, quando diz que sabia usar uma arma, caso Edward machucasse sua filha. Por falar nesta cena, me deu vergonha a presença de Anna Kendrick ali, que é jovem e talentosa demais para uma constrangedora aparição apenas só para pagar o aluguel do mês.

“Amanhecer – Parte I” é pedante, arrastado, com péssimas atuações e temperado com morais, no mínimo, duvidosos. Recomendo que fiquem até os créditos, que são muito bonitos do ponto de vista plástico e possuem uma sequência que liga esta parte inicial à sua conclusão. E não, infelizmente esta não mostra Charlie indo pegar sua arma…

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Thiago Siqueira é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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