Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 29 de julho de 2011

MASH: a genial sátira de guerra que revelou o talento de Robert Altman

Usando a Guerra da Coréia para atacar a Guerra do Vietnã, o cineasta norte-americano faz filme atemporal que denuncia, tira sarro e faz rir na mesma proporção, sem esquecer de refletir sobre o próprio cinema.

Era 1970 e os Estados Unidos já ultrapassavam uma década de envolvimento com a Guerra do Vietnã. O confronto parecia interminável. E por mais que o cinema local estivesse em extrema ascensão, nenhuma obra ainda havia verdadeiramente retratado, criticado ou denunciado as sangrentas batalhas que vitimavam diversos soldados norte-americanos diariamente. Por mais que o fim dessa década e a chegada dos anos 80 tenham trazido longas como “Apocalypse Now” (1979), “Platoon” (1986) e “Nascido para Matar” (1987), o primeiro grande filme a abordar a temática apropriadamente foi “MASH”.

Quem assinava a direção era um tal de Robert Altman, um cineasta já de 45 anos de idade, com quatro desconhecidos trabalhos cinematográficos no currículo e outros tantos na televisão. Para atingir o feito, no entanto, ele nem precisou falar em Vietnã. Utilizou um renegado roteiro sobre a Guerra da Coréia (Stanley Kubrick e Sidney Lumet estão entre os dez nomes de diretores que ignoraram o script) para metaforizar sobre o confronto que acontecia à época. Não precisou nem mesmo encher sua película de intensas sequências de ação que não hesitam em expor corpos mutilados. Muito pelo contrário. Uma comprometida comicidade é a aposta acertada do roteirista Ring Lardner Jr. e de Altman, que aproveitam para usar e abusar da metalinguagem.

A trama do filme se passa quase inteiramente no 4077º Hospital Cirúrgico Móvel do Exército Americano na Coréia.  O grande número de operações cirúrgicas efetuadas, decorrente de vários feridos no conflito, faz com que os médicos Hawkeye Pearce (Donald Sutherland), Duke Forrest (Tom Skerritt) e Trapper John McIntyre (Elliott Gould) tentem se manter sãos com os mais variados atos de rebeldia, desde beber incessantemente, passando pela organização de um hilário e mentiroso velório, até “azarar” as mulheres do batalhão.

Nem mesmo a chegada de uma nova e, inicialmente, responsável enfermeira, impede que o trio se comporte como dita a regra de um hospital. Na verdade, a senhorita O’Houlihan (Sally Kellerman), logo apelidada de “Hot Lips” (lábios quentes), vira o principal alvo das chacotas dos cirurgiões, que também não suportam Major Burns (Robert Duvall), um fanático religioso que decide os desafiar temporariamente. Mesmo assim, eles seguem, entre uma e outra operação médica extrema, promovendo grandes farras que incluem ainda uma viagem a Tóquio para jogar golfe e uma grande partida de futebol americano em pleno acampamento.

Alguns especialistas em cinema poderiam classificar o filme como uma grande comédia, o que de fato “MASH” é. Cenas antológicas envolvendo principalmente Hot Lips são impossíveis de serem esquecidas ao final do longa. O humor, no entanto, tem um claro interesse satírico, assim como em boa parte das obras de Robert Altman. O propósito é tirar sarro e criticar a postura dos soldados norte-americanos durante a Guerra do Vietnã, desconstruindo toda a aura de seriedade que acometia o país no período.  O diretor, enfim, brinca, mas sem deixar de lado a política, algo que a série homônima inspirada no filme esqueceu de fazer.  É como se, há alguns anos, um filme abordasse a Guerra do Iraque provocando gargalhadas em seu público.

Trata-se de uma verdadeira ousadia, elogio que se estende também à narrativa e à técnica utilizadas no filme. Este é o primeiro momento em que vemos na filmografia de Altman a multiplicação dos focos narrativos e o elenco infinito. Inicialmente, pode até se tornar difícil reconhecer os personagens, mas à medida que o tempo passa, percebe-se que o foco não está neles, mas sim nas situações em que cada um se envolve. Todos parecem estar ali por obrigação. Cumprem sim as funções devidas, mesmo com exagerada descontração. Apenas não dão a mínima para os motivos ou para a própria guerra em si. São jovens alienados e inocentes, que apenas se deparam com o terror dos confrontos por meio dos inúmeros corpos que chegam eventualmente à enfermaria.

Ainda assim, o roteiro vencedor do Oscar de Ring Lardner Jr. os constrói com extremo carisma, não os culpando ou julgando-os indevidamente. A intensa improvisação dos atores, outra marca registrada de Robert Altman, também contribui para uma agradável identificação do público com os personagens. A câmera do diretor está ali como uma observadora invisível, para quem não interessa se alguém do elenco gaguejou ou tropeçou. Dessa forma, o filme aposta em longas tomadas e poucos cortes, resultando em uma rara naturalidade cinematográfica, só cessada quando situações dignas das comédias ligeiras do cinema mudo são muito bem inseridas, aumentando a sensação de caos que o filme provoca.

“MASH” também dialoga intensamente com o cinema. Trata-se de um filme de guerra, cujos únicos tiros disparados servem apenas para marcar o fim do período de um jogo de futebol. Mas não falta sangue. No entanto, tudo advém de cenas em salas de cirurgia, cujos pacientes sequer dizem uma palavra ou têm seus rostos exibidos. Estamos diante de uma releitura de gênero, mais uma especialidade do cineasta, que não tem medo de expor sua intenção metalinguística. Nesse contexto, o alto-falante do batalhão tem uma função primordial ao pontuar os capítulos, citar outras obras do gênero, bem como encerrar a produção apresentando toda a equipe envolvida com o longa.

Recrutando o seu elenco em uma companhia de teatro de São Francisco, Robert Altman revela talentos (em especial, Elliot Gould e Donald Sutherland), afastando-se de “estrelas” de Hollywood, como faria até o fim de sua carreira. Mas a principal revelação que veio com as primeiras exibições do filme foi de seu próprio talento. Conquistando a Palma de Ouro em Cannes aquele ano, Robert Altman deu início a uma longa filmografia que, mesmo longe de ser perfeita, é recheada de películas independentes que merecem ser tratadas como obras-primas.

Darlano Didimo
@rapadura

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