Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 20 de março de 2010

Um Sonho Possível

O longa peca pelo descompromisso com a verossimilhança ao contar uma história baseada em fatos reais.

Filmes baseados em histórias reais de ícones do mundo esportivo tendem a laurear em excesso seus personagens. A transformação de jogadas e feitos dos atletas em metáforas sobre valores humanos pode comprometer o teor de verossimilhança do resultado final. Em “Um Sonho Possível”, de John Lee Hancock, há mais um agravante: a presença de uma dondoca altruísta absolutamente surreal, interpretada por Sandra Bullock. Tendo em mãos o script inspirado na jornada verídica do jogador de futebol americano Michael Oher, Hancock deveria ter se preocupado com a credibilidade emocional de seus personagens ao filmar.

A trama relata a falta de perspectivas de Michael Oher (Quinton Aaron), jovem negro, pobre e de tamanhos desproporcionais, que se sente deslocado em meio à indiferença das pessoas. A vida de Big Mike, como é chamado por todos, começa a mudar quando o rapaz é “adotado” por Leigh Anne Tuohy (Bullock), esposa de um empresário bem-sucedido. Aos poucos, os dois vão desenvolvendo laços maternais e o convívio entre duas pessoas de origens tão diferentes modifica a visão de mundo de ambos. Quando se dá conta do talento de Big Mike para o futebol, Leigh Anne encoraja-o a seguir carreira no esporte.

O mote do longa é o conjunto de mudanças provocadas pela chegada de Michael Oher à família Tuohy. A presença do rapaz funciona como uma denúncia sobre o mundo fútil e preso às aparências frequentado por Leigh Anne. O diretor consegue captar o desconforto da personagem de Sandra Bullock em meio à rodinha de conversa com as amigas do shopping. A princípio, é interessante acompanhar o processo de “desalienação” da mulher, à medida que ela passa a ter contato com realidades sociais que ignorava até então. Da mesma forma, é com surpresa que Michael descobre o modo de vida da classe alta norte-americana – e John Lee Hancock aproveita os ganchos para pipocar sátiras ao estilo de vida dos ricos daquele país.

Contudo, a falta de bases sólidas acerca da origem e do cotidiano da personagem de Bullock compromete a naturalidade do processo de transformações que ela vivencia. Sem ter conhecimento sobre a vida prévia de Leigh Anne, o espectador custa a acreditar que seja realmente possível concentrar tanta generosidade em uma única pessoa. E mais: John Lee Hancock ainda exagera em outras direções. Se é difícil aceitar o extremismo beneficente de Leigh Anne, também é complicado criar identificação com a falta de rumo e de atitude de Big Mike. O espectador arrebatado ao fim da sessão pode argumentar que esse descompasso é o grande intuito do filme, mas o público mais desconfiado sabe que o equilíbrio seria fundamental para convencer de verdade.

Há até  mesmo uma sequência que escancara, de forma constrangedora, essa ausência do comedimento. Excitada, Leigh Anne chega ao cúmulo de falar sobre caridade e compaixão momentos antes de uma relação sexual com o marido. É uma passagem fake e desnecessária. O desfile de tipos improváveis continua com a filha reservada e o filho incomensuravelmente maduro. Em suma, ao fim da projeção é muito pouco provável relacionar os personagens do drama com as fotos de acervo das pessoas que inspiraram a história.

Outro pecado de Hancock é a pretensão em requintar e elaborar demais uma narrativa que pede simplicidade. O resultado se traduz pelo cansaço e pelo tédio que tomam conta da segunda parte do filme – intensificados quando o diretor escolhe alongar cenas no campo de futebol ou inserir um burburinho desnecessário quanto ao desfecho de seus personagens. A derradeira reviravolta coroa a falta de discernimento do cineasta em relação ao tempo ideal de uma narrativa como essa: quando todos se enchem de expectativa pelo final que parece se aproximar, surge um novo conflito, dispensável e que não chega a reconquistar nosso interesse pela história.

A festejada atuação de Sandra Bullock, que chamou todas as atenções para um filme que, de outra forma, passaria despercebido, também permanece aquém das expectativas. Nomes fortes como Hilary Swank, Helen Mirren e Marion Cotillard na lista de ganhadoras recentes do Oscar de melhor atriz fazem com que o reconhecimento ao desempenho correto (porém limitado) de Bullock pareça de certa forma precipitado. Apesar da performance decidida e bem-humorada da eterna heroína de “Velocidade Máxima”, a despretensão de “Um Sonho Possível” em parecer sincero e autêntico impossibilita qualquer comemoração pelo prêmio de Sandrinha.

Túlio Moreira
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