Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 02 de janeiro de 2010

Contatos de 4º Grau

Mistura de realidade e ficção? Que nada! O filme é pura ficção. Mas para compensar a enganação, existem muitos bons atrativos.

As primeiras cenas de “Contatos de 4º Grau” nos fazem lembrar a penúltima produção do documentarista  brasileiro Eduardo Coutinho. Em “Jogo de Cena” (2007), mulheres comuns e atrizes, conhecidas e desconhecidas, contam e interpretam histórias de vida, cabendo ao público adivinhar quem está dizendo a verdade e quem está nos enganando. Por meio desse jogo, tomamos consciência dos limites (ou da falta deles) da arte de interpretar, de fingir a realidade. E em “Contatos de 4º Grau”, esses limites são bem curtos.

Anunciado como uma produção que retrataria fatos verídicos e inseriria em sua trama cenas reais, o filme logo tem sua mentira descoberta. O nível das interpretações e a ousadia dessa trama entregam que este longa não passa de pura ficção. No entanto, se não fosse por essa tentativa “furada” de introduzir “realidade”, “Contatos de 4º Grau” teria um resultado bastante satisfatório, pois a história protagonizada por Milla Jovovich possui vários atrativos.

A fita é um thriller ambientado na pequena cidade de Nome, no interior do Alasca. Desde a década de 60, inúmeros desaparecimentos têm ocorrido na localidade, provocando a intensa visita do FBI. A verdade, no entanto, nunca veio à tona. Atormentada pela morte do marido, que também estudou os casos durante anos, a psicóloga Abigail Tyler (Jovovich) passa a investigar indícios do que desconfia ser uma abdução alienígena. Com uma câmera, ela grava sessões de hipnose que realiza em seus pacientes, os quais relatam suas experiências de 4º grau. As histórias sempre coincidem, assim como os sonhos com uma coruja.

À medida que as sessões prosseguem, os casos vão ficando ainda mais sérios. Um de seus pacientes mais atormentados chega a matar a família e cometer suicídio como consequência dessa perturbação. Não demora muito até que a própria Abigail Tyler passe a ter as mesmas sensações. Contando com o apoio de outro psicólogo e de um tradutor de línguas exóticas, ela tentará comprovar suas desconfianças, mesmo com a proibição do xerife local e a falta de apoio do filho.

“Contatos de 4º Grau” já tem início com uma tentativa de manipulação. Com uma floresta escura ao fundo, Milla Jovovich aparece e se apresenta como a atriz que interpretará Dra. Tyler na reencenação das experiências vividas por ela durante o mês de outubro do ano 2000. Logo depois, surge a “verdadeira” Dra. Tyler em entrevista concedida ao próprio diretor e roteirista do filme, o nigeriano Olantude Onsunanmi, em que relata todos os fatos que presenciou.

Ao pronunciar seu próprio nome, entretanto, todo o universo criado pela película já desanda. A respiração, a entonação da voz e a expressão daquela mulher já denunciam que aquela filmagem não é real. Trata-se de uma atriz e, aliás, uma atriz de feições bem expressivas. O rosto magro e os olhos arregalados contrastam com a beleza de Milla Jovovich, em uma estratégia bem típica de Hollywood, que costuma escalar profissionais encantadores para interpretar personagens originalmente não tão bonitos assim.

No entanto, a farsa do longa permanece. Ao longo de todo o filme, acompanhamos áudio e vídeo de consultas, que tem como pacientes personagens desconhecidos e até a própria psicóloga. Os áudios surgem a todo momento, afinal eles são mais difíceis de serem desmascarados. Já os vídeos são mostrados apenas em situações mais apaziguadoras. Cenas de instabilidade comportamental são deixadas para Milla Jovovich e atores coadjuvantes interpretarem. Alguns poderiam chamar o diretor de “espertinho” pela estratégia, mas ele faz a coisa certa.

Olantude Onsunanmi sabe que o seu filme ficaria ridículo se todas as sessões de hipnose e fenômenos paranormais fossem mostrados integralmente pelas câmeras digitais, e, por isso, reserva as cenas para momentos especiais. Utilizando-se de montagens que comparam as sequências reais com as fictícias em quadros, ele tenta convencer o público de que aquela história é verdadeira. E por mais que nem o mais inocente espectador acredite, a edição envolvente e a tensão do longa fazem com que o público deixe esse questionamento de lado em favor de uma trama bem contada.

Onsunanmi, por meio da escura fotografia de Lorenzo Senatore e da sempre presente trilha sonora de Atli Örvasson (“Jogo entre Ladrões”), desenvolve uma película que se sustenta em relatos convincentes para criar medo. Sustos pouco acontecem, mas a expectativa de que o sobrenatural apareça a qualquer instante já vale o ingresso. O expediente é mais ou menos o mesmo de “Atividade Paranormal”, tirando a monotonia e o fato de que “Contatos de 4º Grau” quase chega às vias de fato ao mostrar sombras reveladoras.

No entanto, o roteiro vacila em vários momentos. O maior deles está relacionado ao personagem do xerife local. Apesar da boa performance de Will Patton, o homem parece ter sido construído com o objetivo de exclusivamente atrapalhar as intenções de Abigail Tyler, por mais que todos os indícios levem para a inocência da moça. O xerife quer convencê-la de que tudo não passa de alucinações, assim como o antigo amigo psicólogo que teria vindo ajudá-la nos estudos, mas felizmente a tentativa de um criar um suspense psicológico não é confirmada.

Em um filme com dois tipos de películas, as atuações são interessantes de serem analisadas. Há muito tempo na sua carreira, Milla Jovovich não tinha um papel em que não precisasse correr nem lutar, e a atriz da fraquia “Resident Evil” convence. Quando é exigida, como em insultos com o xerife da cidade, a moça prova que não é uma profissional de performance meramente física. Já a sua versão “verdadeira” não tem o mesmo resultado. A câmera exige uma interpretação realista, mas a atriz (que não possui créditos no filme) é incapaz de conceder esse resultado. Talvez a densidade de seu trabalho tivesse um efeito melhor se filmada em 35mm.

“Contatos de 4º Grau”, aliás, seria bem melhor se dispensasse todas as suas intenções de realismo. A sua história é suficientemente boa para se sustentar sem áudio, vídeos e publicidades falsos. O título do longa também poderia ser mudado para evitar comparações injustas com a maior obra-prima de Steven Spielberg, “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”.

P.S. Durante os créditos finais são exibidos áudios verdadeiros de ligações feitas para a polícia americana relatando visões de OVNIs e coisas do tipo. Por meio desses, podemos perceber a discrepância entre real e ficção.

Darlano Didimo
@rapadura

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