Cinema com Rapadura

Entrevistas   sexta-feira, 09 de agosto de 2019

[ENTREVISTA] Abaixo a Gravidade | “Vivam intensamente”, aconselha o diretor Edgard Navarro

Bate-papo com o diretor do longa-metragem brasileiro "Abaixo a Gravidade".

[ENTREVISTA] Abaixo a Gravidade | “Vivam intensamente”, aconselha o diretor Edgard Navarro>

Com mais de 40 anos de carreira, o cineasta baiano Edgard Navarro dirige e escreve “Abaixo a Gravidade”, seu terceiro longa-metragem com a Truque Produtora de Cinema após “Eu Me Lembro” (2005) e “O Homem que Não Dormia” (2011). O protagonista do filme é Bené (Everaldo Pontes), um homem simples e sábio que vive a terceira idade numa pacata cidade da Chapada Diamantina. Atraído por uma jovem, ele viaja à Salvador aproveitando para cuidar de sua saúde na capital. É a partir desse momento que a obra de Edgard se afasta da narrativa clássica e parte do conceito da gravidade de Nietzsche para enfrentá-la, defendendo o sentimento de liberdade de Bené e de outros personagens pelo caminho.

À esquerda, o diretor Edgard Navarro. À direita, o ator Everaldo Pontes.

Visualmente, “Abaixo a Gravidade” é um deleite pela riqueza de ideias trabalhadas em um mise-en-scène leve e instigante. O público acompanha a jornada de Bené, com seus desejos, frustrações e tamanha empatia que não é difícil compreender as variadas mensagens e propostas do diretor. Edgard se apropria da cultura baiana, sobretudo negra, para confrontá-la com o racionalismo europeu em meio às angústias dos seus personagens. Trata-se de um alerta para que as coisas que deveriam ser naturais para o ser humano prevaleçam contra tudo que o atrai para baixo, a tal gravidade.

O Cinema Com Rapadura teve oportunidade de conversar com Edgard Navarro sobre “Abaixo a Gravidade”, veja abaixo:

CCR: O retrato da Bahia e da cultura afro-baiana é um dos aspectos visuais mais fascinantes do seu filme. No entanto, fica a sensação de ser uma história universal, com personagens que poderiam existir em qualquer outro canto do mundo contemporâneo. Nessa condição de “obra universal versus obra regional”, como você descreveria “Abaixo a Gravidade”?

Edgard Navarro: Justamente ao confrontar Exu e “O Pensador” de Rodin, o filme flerta com a filosofia e a mitologia pra tentar colocar um teorema que termina sendo a síntese de nossa metáfora. E aqui penso ter criado uma das equações das mais potentes: o pensador está ali, petrificado, simbolizando a cultura ocidental, a rigidez de seu modus operandi, a fissura estéril de procurar soluções através do pensamento, ou seja, de um esforço descomunal da mente. A ideia é expor sua impotência. Por sua vez, Exu encarna o transe, a cultura tribal esquecida/menosprezada pelos europeus, o corpus em atividade erótica plena – potência, falo. A metáfora que proponho traz (o personagem) Mierre, que foi “enrabado” quando criança, portanto violência e por isso sequela. Ele será possuído pelo Exu que rege seu espírito, vitimando-o com invasões intempestivas que semelham epilepsia. Em outras palavras, quero profanar o sacrossanto altar da filosofia ocidental branca e prepotente/impotente, fazer com que ela seja vencida pela dança e pelo transe da anima negra africana – “Exu te ama”. É uma amorosa e perversa vitória sobre o colonizador. Com isto, quero dizer que o filme investe na cultura afro-baiana sem abrir mão de uma temática comum à humanidade inteira.

CCR: Em certos momentos da exibição, nota-se símbolos chineses destacados em algumas camisas de Bené. São tantas as mensagens na forma de cartazes, pichações, dizeres em camisas, que a impressão que fica é que tudo legível é importante para o seu filme. Como foi o processo de criação dessas mensagens, explícitas e não explícitas, com a Direção de Arte?

Edgard: As camisas são minhas, bordadas por minha irmã e trazem hexagramas chineses que foram importantes pra mim e por isso ela bordou nas camisas e me deu de presente. Um deles representa “ascensão”, “vitória”, “sucesso”. Há certa bruxaria muito particular nisso, mas uma bruxaria inofensiva, como uma travessura de criança…

CCR: As referências cinematográficas saltam da tela. É raro ver pôsteres de vários outros filmes, por exemplo, com tanto destaque como em “Abaixo a Gravidade”. Para quem conhece as referências, é possível perceber as prováveis influências que tiveram no filme. Até que ponto tais citações foram simples acenos às suas influências para o filme ou foram partes integrantes da narrativa que você construiu?

Edgard: Ambas as coisas. Desde a elaboração do roteiro fui anotando e pontuando o filme com essas citações: a mais importante delas é a que traz “Melancolia” e o nome da moça/asteroide que veio passear entre nós – “Laetitia”. Outro bom exemplo é a maneira como Bené se despede, ao final, a la “O Céu de Suely”: comprando a passagem para algum lugar-nenhum para o qual o pouco dinheiro que lhe resta possa comprar passagem… Assim a placa de estrada (indicando a direção para Coração de Maria) no último plano do filme, que nem o portal da cidade ao final do filme de Karim (Aïnouz), por onde a motocicleta do namorado vai e volta… Todas as demais guardam maior ou menor relação com nossa metáfora essencial.

CCR: É possível conceber que um filme tão pluridimensional seja um mergulho na sua própria essência como ser, e isso faz com que o exercício do cinema se justifique como meio para o próprio entendimento. Porém, ao tomar a perspectiva do público de “Abaixo a Gravidade”, que ideais você buscou imprimir no espectador? Em outras palavras, de que maneira que você espera que o filme impacte o público?

Edgard: Penso que o filme esteja prenhe de humanismo, humildade, tolerância, gentileza de espírito… em contraposição à soberba e à brutalidade vigentes, à grosseria que o mundo promove ao nosso o redor… Através de um mergulho na alma das personagens espero estar contribuindo para promover essas virtudes, de lambuja com humor e reflexões mais ou menos profundas.

CCR: Os conflitos de Bené e de Maisselfe (outro personagem) são existenciais em essência, mas também estão fortemente associados à relação do homem com sua dita masculinidade. Se você pudesse encontrar seus personagens mais jovens, digamos entre seus 20 e 30 anos, que conselhos você daria para eles?

Edgard: É terrível pra um ser humano perceber que suas potências lhe escapam: já não se consegue enxergar bem como antes, o corpo torna-se lento, dores e achaques aparecem. É preciso reaprender a viver com essas limitações todas. É preciso coragem pra enfrentar esse momento com dignidade. Eu digo aos mais jovens: vivam intensamente suas vidas pra não se arrependerem do que não fizeram quando estavam no apogeu de suas potências. Estou certo de que, se vivermos plenamente nossos desejos do corpo e da alma – sejam eles quais forem – talvez teremos a serenidade necessária pra encarar a velhice como coisa natural… e necessária, pois acho que ninguém vai querer ficar aqui depois do show. Quanto ao quesito masculinidade, acho que estamos falando de dois temas específicos: homossexualidade e impotência sexual. Vejamos: uma pichação ocupa-se de denunciar a ambiguidade sexual de Maisselfe (“Ser ou Não Ser Gay”). Trata-se de um homem inseguro e infeliz que não assume sua orientação sexual por algum medo inconsciente não esclarecido. O filme remete-o ao “Teorema” de Pasolini e a uma intervenção gaiata na pichação vista anteriormente (“Serguei Eisenstein”), sendo esta a solução dada à personagem, como querendo dizer que a arte é uma saída. Em relação à disfunção erétil, em momentos também específicos Galego cuida de alardear essa macheza tão propalada e desejável quando debocha impiedosamente do velho: “Toma aí, véi bundão! Eu acho é pouco!”. Bem assim ao gritar um espirituoso postulado reforçado por cartela: “Vida de garanhão é foda!”

“Abaixo a Gravidade” estreou nos cinemas brasileiros em 1° de agosto de 2019. Veja o trailer.

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William Sousa
@williamsousa

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