Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 02 de abril de 2007

300

A segunda adaptação de uma história em quadrinhos para a tela grande em 2007. Seu diferencial? Esta faz jus a sua contraparte em papel. "300" é a tradução perfeita da obra "Os 300 de Esparta", escrita e desenhada por Frank Miller e colorizada por sua esposa e parceira Lynn Varley. Sem pudores em mostrar toda a brutalidade do confilto (em quadros estilizados que tornam tal violência plasticamente belíssima), o diretor Zack Snyder levanta o público, neste filme carregado de sangue e testosterona.

Desde "Conan – O Bárbaro" não se viam tantas espadas e mutilações em uma adaptação de HQ. Mas são épocas diferentes e filmes diferentes. Enquanto o filme do bárbaro cimeriano seguia as normas clássicas de cinema na sua edição, esta adaptação da Graphic Novel "Os 300 de Esparta", de Frank Miller e Lynn Varley, traduz para a linguagem atual dos filmes de ação toda a adrenalina presente na obra original. Não vou me aprofundar nas (pouquíssimas) diferenças entre os quadrinhos e a película ou fazer grandes comparações entre ambas, porque é aí que jaz a força do filme. Zack Snyder não se contentou em refazer a HQ tal qual. Ele, entendendo a diferença entre as duas mídias, a traduziu para o cinema, modificando diálogos e enquadramentos quando necessário, além de acrescentar passagens e personagens, neste roteiro feito pelo próprio diretor em parceira com Kurt Johnstad (ambos praticamente estreando como escritores). O resultado é um filme empolgante e arrebatador.

O filme começa num relato sobre a origem do rei Leônidas (Gerard Butler). Como todos os espartanos, ele passou por terríveis provações durante a agogê, o treinamento militar obrigatório em seu país desde os sete anos. Após tal treinamento, ele reclama seu direito de nascimento como rei. Já adulto, ele se depara com uma complicada situação: Xerxes (o brasileiro Rodrigo Santoro), deus-rei persa, envia a todas as cidades da Grécia seus mensageiros pedindo a seus governantes terra e água, símbolos de submissão ao império invasor. Após negar, de maneira nada sutil, tal oferenda, Leônidas deve se preparar para enfrentar a ira de um exército colossal liderado por um monarca que se acha um deus. Para complicar ainda mais sua situação, políticos corruptos, liderados pelo conselheiro Theron (Dominic West), impedem a mobilização total do exército espartano para a batalha, forçando Leônidas a partir apenas com sua guarda pessoal formada por 300 soldados de elite. Enquanto o rei marcha para uma batalha impossível, sua esposa, a rainha Gorgo (Lena Headey), na esperança de salvar sua pátria e seu marido, tenta convencer o conselho espartano a partir para a guerra, numa linha narrativa criada exclusivamente para o filme.

Durante a marcha, Leônidas recebe o reforço de Daxos (Andrew Pleavin) e seus destreinados soldados árcades. Assim, esse pequeno contingente grego se dirige ao desfiladeiro das termópilas, onde o rei espartano pretende utilizar a geografia local para tentar reduzir sua desvantagem. Durante a preparação para as batalhas, conhecemos um pouco dos espartanos como o Capitão (Vincent Regan), experiente guerreiro, grande amigo de Leônidas e ótimo líder; os jovens Stelios (Michael Fassbender) e Astinos (Tom Wisdom), loucos para provar seu valor no combate e Dilios (David Wenham), o contador de histórias – e narrador do filme, além da interessante (e deformada) figura de Efíaltes (Andrew Tiernan). Aqui jaz algo que alguns podem considerar como defeito: a grande maioria dos personagens são meros arquétipos, sem grandes conflitos ou peculiaridades. Porém, devemos nos lembrar que "300" não tem o intento de ser um filme profundo ou um estudo de personagens complexos. Pelo contrário, desde o começo, o filme tem o propósito de ser uma narrativa onde a ação carrega os personagens, sendo extremamente bem sucedido em seu intento.

Na película, aliás, maniqueísmo pouco é bobagem. Desconsiderando a atual tendência de humanizar vilões, "300" segue a visão de Frank Miller, mostrando os persas como conquistadores sangüinários e os gregos como o bastião da liberdade e de tudo que é bom. No filme, tal ponto de vista é reforçado por uma cena, inexistente nos quadrinhos, onde os Imortais (guarda de elite de Xerxes) montam uma árvore dos mortos, numa das mais fortes imagens do filme (embora, paradoxalmente, bela). Sabemos que, de fato, a coisa não era bem assim. Esparta não era flor que se cheirasse e que os persas eram conquistadores até que razoáveis, mas ninguém vai ao cinema pra ver uma aula de história, certo? O que interessa é que, cinematograficamente, tal postura de "bem absoluto contra o mal encarnado" funciona muito bem no filme.

O elenco está ótimo, considerando que o filme exige uma interpretação mais física que dramática. Gerard Butler compõe seu Leônidas de maneira fabulosa, exalando ferocidade quando em combate, impondo respeito a seus homens e contendo sua ternura em relação ao amor a seu filho e esposa, mas deixando tais sentimentos transparecerem (mesmo que seja o mínimo possível). Já Lena Headey interpreta muito bem sua Rainha Gorgo, uma mulher honrada, mas capaz de tudo por seu país e por seu marido. Ela possui duas cenas especialmente fortes com Dominic West, nas quais cumpre muito bem seu papel. Por falar no intérprete do conselheiro Theron, West faz deste o personagem mais detestável do filme, levando a falta de escrúpulos do político espartano às últimas conseqüências. O ator britânico Andrew Tiernan, sob pesada maquiagem, cria um ótimo Efialtes, fazendo com que sintamos mais pena do que raiva de seu personagem. Já os intérpretes dos soldados espartanos têm pouco a fazer, com algumas exceções: David Wenham, já experiente nesse tipo de filme (ele foi o intérprete do bravo Faramir nos dois últimos filmes da trilogia "O Senhor dos Anéis"), faz um bom trabalho com seu Dilios, o narrador da história (ainda que, em alguns momentos, force demais o sotaque de seu personagem) e Vincent Regan, que possui uma cena especialmente marcante na sua interpretação do Capitão. Quanto a Xerxes, apesar de controlar todo um império e uma rede de corrupção vasta, o personagem tem pouco tempo em cena, mas Rodrigo Santoro consegue ser marcante em suas aparições. O ator teve sua voz alterada por computador (sim, é ele mesmo falando), assim como sua altura, mas a postura arrogante e o modo sexualmente ambíguo de Xerxes são características que transparecem graças à interpretação física do ator brasileiro.

O modo de produção da película, filmada completamente em tela azul, com os atores contracenando apenas uns com os outros, sem cenários ou grandes adereços, não é novo. Vários filmes já se utilizaram dessa técnica, como "Sin City – A Cidade do Pecado", também baseado em uma obra de Frank Miller (e co-dirigido por este). Mas, em "300", esse tipo de filmagem vse torna um pouco mais eficaz, graças ao diretor Zack Snyder que consegue adaptá-lo a seu próprio estilo frenético de câmera, além de carregar influências visíveis do traço estilizado de Frank Miller (repare só na cena em que a frota persa é "acolhida pelos braços amorosos da Grécia"), tornando as seqüências de batalha ainda mais emocionantes e levando o espectador ao delírio. O diretor possui um senso estético bastante apurado, criando tomadas belíssimas, seja nas cenas violentas (as investidas de Leônidas na primeira batalha e a ação em conjunto da dupla Astimos e Stelios merecem destaque) ou em cenas mais sensuais (a dança da Oráculo merece uma menção especialíssima nesse sentido), o que dá ao filme um certo "a mais" em relação a outras produções épicas. Outros fatores contribuem para que o filme tenha seu diferencial em relação a tais produções: o trabalho de edição feito por William Hoy, que consegue incluir velocidade à projeção, sem fazer com que o filme perca coesão; a fotografia de Larry Fong, que emula perfeitamente as cores de Lynn Varley, remetendo diretamente à Graphic Novel e a trilha sonora de Tyler Bates, que combina (por incrível que pareça, de maneira harmoniosa) sons mais clássicos com requintes de heavy metal. Some a isso o competente trabalho da equipe de figurinistas e de direção de arte, sem a qual Snyder não teria conseguido metade do que pretendia as telas (muitos visuais, digamos… exóticos para o exército persa foram criados especialmente para a versão de cinema da história, visando, através do exagero, ressaltar a pluralidade de culturas existentes na vastidão do império).

"300" é um filme bastante honesto, sendo exatamente aquilo que aparenta: uma ótima adaptação de quadrinhos na forma de um épico filme de ação. Não vá ao cinema esperando uma lição de História, mas sim um incentivo a fazer suas próprias leituras sobre essa época fascinante, repleta de impérios magníficos, grandes guerreiros e batalhas fenomenais (mas, diferentemente do filme e da HQ, sem heróis ou vilões absolutos).

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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