Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 25 de março de 2007

Atirador

Trazendo Mark Wahlberg na pele de um 'exército de um homem só', "Atirador" acaba por se mostrar bem melhor do que um típico filme de ação por apresentar bem construídas críticas ao governo americano. Ainda assim, clichês e furos de roteiro estão presentes aos montes, deixando o resultado final apenas mediano.

Após ser revelado ao mundo com destaque em "Boogie Nights", Mark Wahlberg vem se mostrando um nome forte já há um certo tempo em Hollywood, mas foram poucas as vezes em que ele próprio era o centro das atenções de um filme. Em "Uma Saída de Mestre" dividia as atenções com Charlize Theron e Edward Norton; em "O Corruptor" com Chow Yun Fat; em "Planeta dos Macacos", apesar de ser o protagonista, a principal atração eram os seres maquiados de macacos etc. Tudo bem, em "Rock Star" a história girava em torno de seu personagem, mas as músicas acabaram chamando mais atenção do que o protagonista. Após ser indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por "Os Infiltrados", chegou a hora de seu nome ser cogitado para comandar produções grandiosas (até mesmo um longa baseado nos brinquedos "Comandos em Ação" ele está cotado para estrelar), e "Atirador" é o primeiro filme dessa sua nova fase. E pode-se dizer que possui os quesitos ideais para marcar esse novo início: seu nome lidera absoluto no pôster; ele interpreta um herói que enfrenta qualquer problema sem nenhuma dificuldade; tem ação na dose certa; uma história bacana mas sem novidades; e pronto. Eis um bom filme de ação, que provavelmente será esquecido futuramente, mas abrirá mais portas para o astro.

Wahlberg vive Bob Lee Swagger, um ex-atirador de elite dos Marines, que se afastou do trabalho após a morte de um amigo. Isolado em um refúgio remoto nas montanhas, Bob é encontrado pelo coronel aposentado Isaac Johnson (Danny Glover). Johnson lhe diz que o país precisa de sua ajuda, já que a vida do presidente está em risco e apenas suas habilidades em tiro de longa distância podem impedir que esta ameaça se concretize. Inicialmente relutante, Bob aceita o trabalho. Porém logo ele descobre que tudo é na verdade uma armação patrocinada por Johnson. Caçado, sem ter onde se esconder e contando apenas com a ajuda da mulher de seu falecido amigo e de um agente recém-chegado no FBI (Michael Peña), o atirador inicia uma batalha desesperada onde sua habilidade militar e psicológica será testada. O tempo corre e ele precisa descobrir quem são os verdadeiros matadores antes que o matem.

Pela sinopse, já dá para perceber que o roteirista Jonathan Lemkin, baseando-se no livro de Stephen Hunter, não teve grandes dificuldades em fazer algo diferente, pois a história de tentar proteger o presidente de um assassinato, e depois o jogo se inverter e passar a ser perseguido como principal suspeito, não é novidade nenhuma, como podemos ver em filmes como o ótimo "Na Linha de Fogo", estrelado por Clint Eastwood, e até no terrível "Triplo X2 – Estado de Emergência". Até mesmo a história da morte do amigo no começo para criar-lhe uma espécie de 'trauma' é totalmente clichê, de modo que o espectador desde o início já imagina como esse fato será utilizado mais adiante. Tudo indicava que seria mais um filme de ação desprezível, daqueles que poderiam ser estrelados por Dolph Lundgrenn e lançados direto em DVD, mas "Atirador" aos poucos vai mostrando seu valor. O filme acerta nos detalhes pequenos, que geralmente são ignorados em filmes do gênero, como: a importância do vento, da altura, pressão e outras vertentes na hora de dar um tiro; ou o uso de uma roupa especial na neve para se camuflar; e uma explicação técnica para a farsa de 'disfarçar' um tiro quando a bala não sai da arma.

Para quem procura ação, não há do que reclamar, pois o longa é movimentado do começo ao fim, mas as cenas de ação nunca parecem soar mentirosas em demasia. Temos que aceitar o fato que Bob Swagger teve treinamento digno para ser o melhor atirador de elite do país, por isso, se vemos ele destruindo um exército inteiro, não é por acaso, e o modo que o faz, é bem plausível, diferente do modo exagerado como Schwarzenegger faz em "Comando Para Matar". Swagger pode ainda estar longe de ser um Chuck Norris, mas sua aptidão em batalha chega quase a de John Rambo (inclusive com a mesma audácia de estancar feridas sozinho). E as cenas são dirigidas com primor por Antoine Fuqua. Desde a discreta perseguição no início, ao espetacular ataque a casa do magnata vivido por Rade Serbedzija, até o sufocante clímax, todas mexem com a adrenalina do espectador. Isso se deve também ao eficiente trabalho de efeitos especiais, de modo que todas as explosões e mortes soam verdadeiras.

Mas "Atirador" mostra mesmo seu diferencial quando deixa de ser apenas mais um filme de ação sobre um homem em busca de sua inocência, e apresenta inúmeras críticas ao governo americano, dando muitas cutucadas às farsas em torno de fatos que chegam até nosso conhecimento de maneira distorcida por meio da mídia. Sim, o filme deixa claro como os EUA são mestres em 'criar situações', algo, no mínimo, corajoso para uma produção hollywoodiana, visto que há alguns anos era inimaginável algum filme apresentar uma postura contrária ao governo dos republicanos. E as simbolizações dos políticos não só estão presentes nos 'vilões' vividos de maneira estereotipada por Danny Glover (saudades de Roger Murtaugh de "Máquina Mortífera"), Ned Beatty (o eterno ajudante de Lex Luthor nos filmes originais de "Superman") e Elias Koteas ("Além da Linha Vermelha"), mas em diálogos que citam fatos concretos da farsa estadunidense. Exemplo é quando Swagger vai pedir ajudar a um veterano atirador, este cita com ironia: "Isto está tão claro quanto a existência de armas químicas no Iraque, ou que Anne Nicole Smith se casou por amor". Ainda, há referências explícitas ao estranho assassinato do presidente John F. Kennedy, a prisão de Abu Ghraib, entre outros.

Assim, em meio a desilusões políticas, em partes o longa deixa de ser clichê por mostrar o desmistificado patriotismo do protagonista (sim, ele era um patriota fanático, e isso é usado como desculpa por parte dos que o contratam). Apresentando sua revolta, o protagonista se assemelha muito a outro personagem dos cinemas: Jason Bourne, de "A Identidade Bourne" e "A Supremacia Bourne". Assim como Bourne, Swagger vira um ser que age por si próprio, perseguido por autoridades, e não teme em quebrar a cara ou matar qualquer um que apareça em seu caminho, inclusive policiais, governantes, sejam armados ou não. Assim como Bourne, ele busca a justiça de alguma forma, busca a verdade, mas de acordo com a sua visão do que é correto, pouco se importando para autoridades. E essa personalidade de Swagger é muito bem representada por Wahlberg, que mantém uma cara de revolta durante quase toda a projeção, dando ao atirador não apenas um jeito de durão, mas de um típico anti-herói decepcionado com sua pátria. O momento final, quando ele enfim tem a chance de exprimir sua fúria contra os 'traidores', é realmente impressionante.

O filme tem seus muitos destaques, mas isso não o livra de ter diversos furos de roteiro, que por muitas vezes, chegam até a sobrepor as qualidades, deixando a impressão de ser mais um típico filme de ação 'Domingo Maior'. Afinal, como Nick, policial vivido por Michael Peña (muito correto por sinal, transmitindo bem a imagem do homem inexperiente, mas disposto a fazer um bom trabalho), sai impune quando Swagger é julgado, afinal, ele foi seu cúmplice o tempo todo? Além de o fato de Swagger ensinar Nick a se tornar um atirador de elite de qualidade em questão de minutos é duro de engolir. A presença da bela Sarah (vivida por Kate Mara) na trama para ajudar o protagonista é até entendível, mas induzir um possível caso entre eles, soa como uma desculpa para depois ela se tornar apenas a 'mocinha ameaçada'. Forçado demais.

Ainda não foi desta vez que o diretor Antoine Fuqua apresentou um trabalho a altura de seu "Dia de Treinamento", porém, se mostra bastante superior a bombas suas como "Rei Arthur" e "A Isca". Como diversão, "Atirador" é um prato cheio, e os fãs de filmes de ação certamente não terão do que reclamar. Pode-se considerar o filme como um Rambo menos anabolizado, e mais ainda, como um filme da franquia Bourne com um roteiro menos bem trabalhado. Só em ter a ousadia de chutar a hegemonia estadunidense já merece respeito.

Thiago Sampaio
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