Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 14 de março de 2007

100 Escovadas Antes de Dormir (2006): de verão a verão

"100 Escovadas Antes de Dormir" é um filme intenso que mostra situações alarmantes envolvendo uma adolescente em busca da auto-afirmação. Um longa que choca diante de tamanha realidade.

Muito comentado antes, durante e depois de sua estréia, “100 Escovadas” é o tipo de filme que provoca o espectador e chega a causar certo desconforto aos mais conservadores. A história de Melissa P., uma jovem italiana que passa por experiências sexuais que muitos adultos só escutam falar (e de cabelo em pé!) chegou ao Brasil dividindo opiniões.

Provocante e insinuante, o longa aborda desde a imaturidade de meninas com pouca formação familiar ao problema de comunicação enfrentado pelos pais e filhos dos tempos atuais. Existe uma constante sensação de desrespeito mútuo em relação às idades de cada um – o que provoca um desentendimento.

A história narra o drama de Melissa, uma garota que se inicia no sexo de maneira brutal, sendo humilhada em seguida pelo garoto por quem nutre uma paixão sem limites. Decepcionada, ela acaba seguindo um caminho inverso na cura da dor que teve: passa a buscar algo que prove a si mesma de que é forte, de que coisas como essa não podem e nem irão atingi-la. E passa a agir dessa maneira diante de todos – a não ser nos momentos em que fica sozinha e chora; e nega o choro; e chora novamente.

A mãe, apesar de solícita, não consegue chegar na filha – ela enxerga a menina como uma criança ainda, e sequer percebe tudo que Melissa tem passado, a não ser o que ela exibe superficialmente. A única que ainda consegue ver que algo está errado é a avó (que vive com as duas), com quem tem uma relação muito próxima – e com quem aprende o efeito “terapêutico’ das cem escovadas antes de dormir. Os pais, impossibilitados de prestar atenção nos filhos, passam a sofrer de um distanciamento, enquanto os filhos acabam indo buscar informações de locais que não são exatamente a melhor fonte de ensino – como a Internet. A exposição é muito alta. O adolescente tem como característica a falta de noção de riscos.

Buscando nas aventuras sexuais o amor e o afeto que acredita faltar em sua vida, a personagem passa por uma desconstrução emocional para tentar se achar como uma pessoa. Até então, ela não havia se descoberto, não estava definido quem era ou o que gostava – o que a leva ao caos. Ora, se o auto-conhecimento já é difícil para um adulto, imagine isso quando se tem apenas quinze ou dezesseis anos. Ao entrar em conflito, ela busca amor. No entanto, não consegue enxergar o amor que lhe é oferecido diariamente pelo colega de sala – ela não está pronta ainda para perceber algumas coisas. Em alguns momentos, chega a ser cruel assistir a alguém tão novo passar por situações como aquelas.

Luca Guadagnino (na direção) aborda de maneira muito sensível o drama psicológico enfrentado por uma adolescente profundamente solitária. Os adolescentes estão muito sozinhos sim – e descontrolados com o excesso de liberdade e a constante ausência dos pais. Acabam perdidos, enquanto os pais não conseguem enxergar o que acontece, quem dirá como resolvê-lo. A falta de comunicação nos dias de hoje é seríssima. Guadagnino sabe disso, e aborda de maneira convincente a difícil tarefa de entendimento que acontece nas diferentes gerações. Mostra-se bem a idéia de que são três mulheres de diferentes concepções vivendo juntas – e de que não é impossível haver uma boa relação entre elas por isso, dado o exemplo da relação entre avó e neta.

O filme acontece através de um ciclo: começa e termina no verão – é um filme todo voltado para a forma cíclica de ver as coisas. Do mesmo jeito em que a batalha é travada no início do filme, vemos a batalha travada na afirmação dos relacionamentos e na forma como eles caminham por etapas tortuosas. Uma hora Melissa consegue se entender com a mãe, para no minuto seguinte discordarem de algo e tudo começar de novo.

María Valverde, a atriz espanhola que dá vida à Melissa, apesar de parecer inexperiente tem um currículo considerável na área de atuação. E não se engane: ela só parece inexperiente – essa é a roupagem dada a Melissa, e que se encaixa perfeitamente no que se espera da personagem. Valverde faz com que Melissa pareça mais palpável ainda, entregando bastante realidade a uma história que já fornece elementos suficientes – mas que, claro, depende de seus atores. Assim como a atriz, o núcleo familiar composto por Geraldine Chaplin (no papel de avó) e Maria Teresa Bagardo (em seu primeiro longa, vivendo a mãe) se sai bem, apesar de que o brilho do filme pertence descaradamente à protagonista do longa.

A atriz dá a Melissa características de uma típica menina sonhadora que fantasia bastante (assim como a maioria das garotas de sua idade), mesmo passando por todas as desilusões que acumula. Ela romantiza a figura masculina o tempo todo: nutre um fascínio por um cara que a humilha e trata mal (que claramente não a respeita), mas que diz amar e por isso perdoa tudo; e existe a figura heróica do pai, que irá salva-la de tudo, mas com o qual ela não consegue estabelecer diálogo, porque assim como a mãe, existe um distanciamento comunicativo – soma-se a isso o fato de que ele mora longe. Numa das abordagens mais significativas, aparece claramente a discussão da sexualidade feminina – tema do debate neste sábado. Fica claro que para as mulheres é ainda mais complicado de descobrir (e aceitar) a própria sexualidade.

As mensagens expostas sobre o tema são muito contraditórias: a sociedade demanda liberdade sexual, auto afirmação e a vivência do desejo; mas se você é livre, a sociedade passa a puni-lo com discursos machistas – o que gera conflitos até mesmo na cabeça de mulheres maduras. Melissa sofreu discriminação pelas experiências que passou – mas não vieram de sua mãe, ou de sua avó: vieram do próprio grupo ao qual pertencia – dos que participavam (e viviam) as mesmas experiências que ela.

Ser mulher e ser livre sexualmente parecem ser coisas totalmente diferentes nos discursos que encontramos por aí. A liberdade sexual então continua sendo uma prioridade unicamente masculina? Mesmo se dizendo moderna, percebemos na sociedade idéias centenárias que parecem só mudar de roupagem através do discurso, mas no fundo continua sendo a mesma noção onde homens e mulheres permanecem com posições, direitos e deveres divergentes.

Beatriz Diogo
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