Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 12 de março de 2007

Dreamgirls – Em Busca de um Sonho

Indicado a oito Oscars, incluindo três para melhor canção, “Dreamgirls – Em Busca de um Sonho” chega para mexer com o público e causar um bom resultado final, apesar de seu roteiro um pouco problemático. Com um elenco e uma trilha sonora impecáveis, o longa mostra que toda sua repercussão mundial não se deve somente ao seu caráter comercial, mas em maior parte à sua eficiência técnica.

O roteiro baseado em uma peça homônima de sucesso da Broadway conta a trajetória musical das The Dreamettes (ou seria a verdadeira história de “The Supremes”?), que atingiu as paradas de sucesso nos anos 60 com suas músicas charmosas. Mas para isso ter acontecido, o grupo formado por Deena Jones (Beyoncé Knowles), Effie White (Jennifer Hudson) e Lorrell Robinson (Anika Noni Rose) precisou ter a sorte de chamar a atenção de Curtis Taylor Jr. (Jamie Foxx) para conseguir dividir um espaço no palco com o grande astro do momento, James “Thunder” Early (Eddie Murphy). As Dreamettes mais tarde teriam a oportunidade de seguir carreira solo, virando “The Dreams”, mas para chegar ao topo da música e serem reconhecidas por seu talento. A grande voz do trio vem de Effie, mas por sua condição estética ser inferior e menos atraente para cativar o público em geral, Curtis acaba dando a Deena o cargo de primeira voz, mexendo com o orgulho de Effie. Com o surgir da era do musical, a ambição de Curtis leva esse grupo que já foi uma família com sonhos compartilhados, para a frente de uma indústria à beira da revolução musical. E quando as luzes acendem e as cortinas se abrem, eles mesmos mal reconhecem no que se transformaram. Seus sonhos estão finalmente se realizando, mas a um preço talvez muito caro para seus corações suportarem.

As comparações com a trajetória das Supremes são inevitáveis. Por mais que o roteiro mexido por Tom Eyen e Bill Condon, este último também diretor, tente trocar nomes e implantar situações que não aconteceram na verdadeira vida das cantoras, fica claro o paralelo das histórias. Sucesso nos anos 60, o grupo The Supremes deixou de lado sua grande voz, Florence Ballard (Effie), por não se enquadrar nos padrões de beleza capazes de arrastar a atenção do público e, devido ao relacionamento de Diana Ross (Deena) com o Berry Gordy (Curtis), dono da gravadora Motown, e por sua beleza inquestionável, acabou liderando o grupo paras se encaixar nos padrões da industria musical da época. Desiludida e deixada de lado, Florence se entrega ao alcoolismo e é alvo da depressão, o que levou a falecer aos 32 anos de idade. Semelhanças e diferenças à parte do roteiro de “Dreamgirls”, a trama traz mais uma abordagem dos efeitos colaterais do sucesso e mostra a ambição financeira e artística das gravadoras que procuravam lançar seus cantores no mercado tão enfadonho da época. Este projeto estava pendendo há um bom tempo. Na década de 80, a idéia inicial de adaptar o musical surgiu, mas não conseguiu ir em frente, já que Whitney Houston, cotada para viver Deena Jones exigia poder cantar algumas músicas de Effie White. Na década seguinte, o projeto foi repensado, mas o cinema internacional estava vivendo a péssima fase dos musicais hollywoodianos, com grande orçamento, porém com pouca bilheteria, o que fez o filme entrar na geladeira mais uma vez. Foi somente agora, após várias tentativas bem sucedidas de trazer os musicais de volta ao sucesso com “Moulin Rouge – Amor em Vermelho”, “Chicago”, o remake de “O Fantasma da Ópera”, “Johnny e June”, “Ray” e até o mediano “Os Produtores” que Bill Condon foi convidado para levar “Dreamgirls” às telonas.

O resultado de toda uma dedicação e sensibilidade de “Dreamgirls” está na cara. Por mais que possa ser rotulado como comercial o bastante para arrecadar milhões em bilheteria devido aos atores envolvidos no projeto, percebe-se que há uma competência ímpar na sua realização. A afinidade de Condon com a história dá um quê de credibilidade, juntamente com a competência de seu elenco. Condon conduz o longa de uma forma simplista, porém com um toque de requinte que eleva seu trabalho à condição máxima do que poderia ser feito com o musical. É fato que o excesso de cortes feitos pela edição acabam gerando erros seqüenciais e mostram amadorismos ao exagerar nos fades, que acabam quebrando o andamento do filme, mas este não é o único responsável por essa quebra. Seria hipocrisia não comentar sobre as falhas gritantes no roteiro, já que fica bem clara a brevidade com que os fatos vão sendo postos em questão, muitas vezes excluindo algumas informações extremamente importantes para o entendimento geral. A ousadia de quebrar a barreira temporal ao implementar novos recursos que demonstrem que passou-se algum tempo entre os fatos acaba sendo arriscada demais e não funciona em sua totalidade. Já em relação ao conteúdo do enredo, é óbvio que se a intenção mesmo foi registrar a história das Supremes, deixa um pouco a desejar, mas visto como um musical em sua mais consistente definição, não há muito o que reclamar. A deficiência de “Dreamgirls” está também na falta de harmonia de alguns momentos cantados mal enquadrados no diálogo simples dos personagens, além de se estender demais em alguns números. Mas particularmente, o resultado final do filme me pareceu tão satisfatório que prefiro não relevar muito essas pequenas falhas.

O elenco e a música são os dois pontos mais fortes da película. Por ser grande fã do musical original da Broadway, a cantora e atriz Beyoncé Knowles se dedicou inteiramente a construir Deena Jones, tomando aulas de atuação e canto, resultando em uma interpretação espontânea e totalmente longe das superficialidades vistas em seus trabalhos anteriores no cinema, como em “A Pantera Cor-de-Rosa”. Além de sua voz magnífica e presença de palco marcante, Knowles se dissocia àquela cantora que foi convidada apenas por questão de atrair seus fãs e levá-los ao cinema. Por mais que tenha sido apontada pelos produtores como protagonista, o fato é que seu papel é mais um rejunte à trama que não dispõe de somente um protagonista, o que deixou muitos inconformados por acharem que Jennifer Hudson foi “mais” protagonista do que Knowles, o que em partes tem fundamento. De qualquer forma, uma não exclui a outra e a indicação da primeira ao Globo de Ouro de Melhor Atriz foi parcialmente merecida, por seu esforço e bom desempenho. Falando em Hudson e sua carreira meteórica, eu estava ansioso em vê-la em ação para me conformar com o sucesso que conseguiu. Perdedora do programa “American Idols”, Hudson concorreu ao papel com mais de 700 candidatas, sem ter nenhum tipo de privilégio e, ao ser escolhida, ganhou quase 10 quilos para interpretar Effie White. Além da voz mais estridente e bela que eu já ouvi, desculpem-me os fãs de Whitney Houston, Hudson dá ao seu personagem uma identidade bastante convincente. Sempre espontânea e ciente de seu talento, mostra seu ego ferido e sabe variar as nuances que Effie vive. Com um destaque maior na trama, Hudson nos dá vários momentos de emoção, advindos de sua voz como um grito de clemência embebido a muita tristeza. É impossível não se emocionar nas performances de “Love You I Do”, ou não se sensibilizar com seus questionamentos no início de “Family” ou não se entristecer ao vê-la no palco, sozinha, cantando “And I’m Telling You I’m Not Going”.

Já Eddie Murphy continua sendo prepotente. Não simpatizo muito com o ator, ou muito menos com seus trabalhos de comediante de meio porte, mas sua atuação também está memorável. Apesar da deficiência do roteiro de mostrá-lo apenas como uma ponte para o grupo The Dreams se destacar, seu personagem perde função social do meio para o fim da trama, quando é superficialmente posto em pauta o seu envolvimento com as drogas. O que em partes não justifica um maior caráter em seu papel, pois Danny Glover tem uma participação bem mais branda e não deixa nada a desejar, assim como Anika Noni Rose, a terceira integrante das The Dreams, com menos destaque, porém com uma voz maravilhosa. Assim também funciona com Keith Robinson e Sharon Leal. Já Jamie Foxx consegue fazer de Curtis um ser desprezível. Ambicioso e capitalista, o ex-vendedor de carros que se aventura na vida musical dos anos 60 para fazer fortuna, passa por vilão a partir do momento em que rebaixa Effie. Desde então, suas derivações de postura acabam sendo inaceitáveis e explodem quando seu personagem tenta justificar todos os seus atos e caracteriza a voz de Deena como “sem personalidade”. É aí que surge outro momento inesquecível ao som de “Listen”, onde Deena grita seus sentimentos e desmente a teoria de Curtis. Sempre bom ator, Foxx só decepciona pela pouca dedicação em suas performances musicais, o que é particularmente assustador depois de “Ray”.

As canções fazem de “Dreamgirls” inesquecível. Por mais que seja em menor proporção visto alguns outros musicais de maior sucesso como o impecável “Moulin Rouge – Amor em Vermelho”, a construção das músicas acrescenta a trama e desenvolvem muito melhor o roteiro do que os diálogos estabelecidos não-musicais. Tal reconhecimento rendeu três indicações ao Oscar, apesar de que “Patience”, “Love You I Do” e “Listen” não sejam as grandes performances do longa. Particularmente, prefiro “One Night Only” e “And I’m Telling You I’m Not Going” como as mais significativas dentro do contexto estabelecido na produção. De qualquer forma, outras boas músicas embalam “Dreamgirls”, assim como a impecável direção de arte que mostra com perfeição o desenvolvimento do cenário vivido em cada época pelas cantoras. Ajudado pelo figurino requintado e pela fotografia de Tobias A. Schliessler, fazem da parte técnica um verdadeiro exemplo de como se deve proceder em um musical e faze-lo funcionar bem. Defeitos à parte, “Dreamgirls” vem mexer com a emoção e mostrar que não é só mais um produto e que Hollywood está dando os passos certos na construção de novos musicais que agradam a crítica e o público. E uma salva de palmas para a nova e promissora estrela chamada Jennifer Hudson.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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