Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 28 de março de 2007

Ventos da Liberdade

Agraciado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes, “Ventos da Liberdade” é mais do que um épico político, pois transcende muito mais para as causas humanitárias e sociais de uma Irlanda amedrontada pelo domínio britânico de suas terras, fugindo um pouco melodrama convencional.

Ambientado na Irlanda de 1920, o longa mostra o conflito do domínio da Inglaterra em cima da Irlanda, onde trabalhadores rurais começaram a se reunir pretendendo formar exércitos voluntários passíveis de enfrentar os esquadrões britânicos, que subjugavam seu poder e evitava que o povo irlandês finalmente pudesse ter sua independência. Meio a este fato histórico, o protagonista Damien (Cillian Murphy) abre mão de começar a trilhar sua carreira de médico para se juntar à ideologia de seu irmão Teddy (Padraic Delaney) de não deixar sua nação à mercê das autoridades britânicas e buscar sua liberdade. Os combatentes da liberdade usaram táticas audaciosas, a ponto de forçar a desistência do domínio inglês. Ambos os lados concordaram com um tratado para terminar com o derramamento de sangue, mas, mesmo com a paz aparente, a guerra civil levou as famílias que lutaram lado a lado a se tornarem inimigas, fazendo com que a lealdade fosse testada mais uma vez.

A primeira observação que se faz logo de cara nos minutos iniciais do longa é que ele já supõe que o público tenha algum conhecimento sobre a história que será contada, ou seja, não faz questão de mostrar todo um aparato de iniciação que serviria para explicar e ambientar o espectador à trama, o que por um lado pode ser péssimo, já que pode acabar confundindo um pouco quem assiste, mas por outro lado, mostra-se bastante eficaz ao modular os acontecimentos seguintes. O roteirista Paul Laverty construiu uma história basicamente interessada em relatar como surgiram as forças revolucionárias essenciais para que o poderio britânico fosse questionado durante a guerra civil que se instalou na Irlanda, o que acabou deixando um pouco o contexto mundial de fora. Quero dizer com isso que particularmente senti falta de uma leve mostra de como o mundo e a própria Inglaterra estavam encarando os fatos, puxando mais para o lado irlandês. Não acredito que essa opção de focar somente na visão irlandesa tenha sido um erro, muito menos que isso tenha deixado o filme anti-britânico, mas um pouco mais de contextualização não machucaria ninguém. De qualquer forma, Laverty faz de “Ventos da Liberdade” um grito republicano que muitas nações já viveram, remetendo, por exemplo, ao período de repressão ditatorial que vivemos. Sempre bastante pragmático ao dar ritmo à trama, faz com que ela cresça quando você menos espera. Até então, ela é conduzida por Ken Loach de uma forma bastante enxuta e que aparenta manter uma linha bastante uniforme, sem avanços significativos na história, e demora bastante para entrarmos em sintonia com os personagens para entender seus objetivos e acreditar neles.

Loach opta por uma estética um tanto quanto ousada. Dispondo de uma câmera bastante pessoal, roda a história de acordo com o olhar dos revolucionários e transcende o registro das imagens, passando a sofrer junto com eles, se inquietando, informando e transparecendo o olhar amedrontado dos republicanos. Mediando entre planos fechados e alguns intermediários, Loach capta muito bem o feeling das cenas, apesar de nem sempre ousar em investir em fotografias fenomenais, até porque tudo o que ele não quis registrar no filme foi uma sensação de felicidade ou beleza. É possível perceber que paira o pessimismo, a insegurança e, ao mesmo tempo, instiga o espectador a não se penalizar com a situação, tentando passar o baque que foi para os irlandeses ter um tratado ‘pacífico’ entre as nações, mas que ainda deixava a Irlanda nas mãos da Inglaterra. Talvez seja a partir daí que Loach consiga não cair no sentimentalismo exagerado dos filmes de guerra, que sempre mostram mães chorando horrores ou um amor proibido ou intenso, capaz de destruir a linha tênue da história. Percebemos que tudo é bem medido e todos os excessos ou as faltas são justificáveis. Loach faz transparecer uma realidade que foi meio misturada com o imaginário, mas que funcionam de uma forma bastante eficaz, convencendo e inebriando o público a situações, de certa forma, caricatas, mas aceitáveis e que possuem ótimos argumentos em existir, que teriam funcionado mais ainda se a trilha sonora se fizesse mais presente. Sempre distante dos planos, ela vai só conduzindo a história, nem sempre participando dela, o que é lamentável, já que ela me pareceu tão espontânea, assim como o silêncio crucial optado em diversos momentos.

Como se não bastasse uma cabeça ousada e instigante de Loach, conseguiu extrair mais uma interpretação magnífica de Cillian Murphy, certamente o maior destaque de todos. O ator consegue fazer seu personagem evoluir e ir mudando seu caráter de acordo com os seus objetivos que iam sendo (ou não) conquistados e talvez isso seja uma das maiores preocupações para um personagem conseguir passar credibilidade. O mal de alguns filmes hollywoodianos é que nem sempre os heróis conseguem demonstrar seus objetivos com a clareza suficiente para acreditarmos nele, mas Loach extraiu de Murphy todas as alterações de tons, gestos e atos que poderia render. Padraic Delaney possui uma performance básica, mas mostra-se o contrário de Murphy e não consegue muito bem variar os patamares que seu personagem atinge, principalmente quando os irlandeses começam a lutar entre si e este precisa ter uma postura diferente dos revolucionários, cargo este que ele ocupara na primeira parte do filme. O que se percebe é que Teddy (Delaney) realmente não se importara com tudo que passou e que seu entendimento de paz acabou não parecendo tão objetivo quanto antes. Liam Cunningham teve uma participação secundária, mas sempre que aparecia em cena dava a certeza de uma boa performance. Não importa quanto tempo passe, ele continua em forma para qualquer papel que possa receber. O restante do elenco cumpriu basicamente sua função, mas não fugiu muito de estereótipos de militares mandões e impiedosos que conseguem tudo à base do grito.

Realista e pretensioso, “Ventos da Liberdade” levanta questionamentos do que as militâncias mundiais fazem para demonstrar poder e outras fazem para não se render a ele. É um exemplo interessante de que uma idéia na cabeça que se junta com um corpo técnico responsável com certeza dá um bom filme. Mesmo sendo longo, cansativo e com um ritmo rastejante, deixa o melodrama excessivo de lado e parte para um consenso histórico e revolucionário muito mais objetivo, cujas idéias vão se moldando com o decorrer do tempo e vão mexendo com quem assiste, sendo inegável que o filme trouxe formas novas de abordagem aos freqüentes épicos políticos. Uma boa opção para refletir e admirar.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

Compartilhe

Saiba mais sobre