Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 13 de abril de 2005

O Circo

“O Circo”, é, sem sombra de dúvida, um dos mais belos filmes já feito sobre o sutil equilíbrio entre a comédia e a tragédia, capaz de botar em foco assuntos tão polêmicos como a opressão dos trabalhadores, bem como o olhar de Chaplin perante a indústria do entretenimento.

Desde cedo, Charles Spencer Chaplin aprendeu a saber lhe dar com as tristes circunstâncias da vida, com a qual compartilhava com o humilde casal de atores que o geraram. A constante bebedeira do pai associado à degradação constante de sua mãe (que, oscilando entre a loucura e a sanidade, a incapacitava de cuidar de seus próprios filhos), levou o pequeno Chaplin a procurar muitos biscates para conseguir sobreviver. Dentre eles, um lhe agradou mais que os outros: subir num palco e fazer as pessoas morrerem de rir. Tal biscate, adquirido desde o dia em que, com apenas cinco anos de idade, substituiu a própria mãe, no palco de Adershot, no dia em que ela sucumbiu à desnutrição e à insanidade, rendeu a Chaplin o lugar de prestígio que ele sempre possuiu (e há de possuir para todos os tempos) aos apaixonados pela sétima arte.

O magistral Carlitos – o vagabundo mais querido do cinema mundial, eterno sofredor de injustiças das mais variadas espécies – imprimia com maestria a sua vida sofrida nos filmes que elaborava (talvez até mais que cineastas como Ingmar Bergman e Federico Fellini que se declaravam diretores autobiográficos). “Ele jamais superou as impressões da sombria mocidade e até hoje busca compensação pelas frustrações e humilhações de seu passado”, dizia Sigmund Freud. Porém, Chaplin não pretendia sensibilizar os outros. Pelo contrário, queria alcançar a sua liberdade individual, tão perfeitamente retratadas na figura de Carlitos através de sua bengala, de seu velho traje aristocrático e o de seu ar de homem distinto. “Vagabundo, cavalheiro, poeta, sonhador, solitário, sempre esperançoso de encontrar um amor e uma aventura. Uma figura digna e gentil, mas nem por isso incapaz de roubar o pirulito de uma criança. Ele se sentiria bem se fosse tomado por um cientista, um compositor, um duque, um jogador de pólo. Um herói convencional, vítima que triunfa sobre o carrasco social não pela coragem, mas graças à engenhosidade de uma força de espírito que não tem nada a ver com inteligência”, era o que dizia nosso mestre em sua autobiografia.

Triunfar sobre o carrasco. Era essa a atitude que sempre pretendeu assumir. Uma atitude que permitia a corajosa sobrevivência perante o crescimento avassalador das grandes cidades, notadamente materialistas e egoístas. Para Chaplin, a vida assumia o valor de uma eterna peregrinação, uma luta indefinida em busca de sua própria liberdade.

Descendente da escola da Pantominia, Chaplin transcendeu as palhaçadas de Karno e Sennett, dando uma dimensão dramática ao seu personagem. Atrapalhado, ele acha sempre o modo de sobreviver perante o mundo brutal que conheceu ainda criança. Os temas da falta da liberdade, da igualdade e da fraternidade da Revolução Francesa (1789) – matéria de estudo para a “Trilogia das Cores”, de Krysztof Kieslowski – , também foram genialmente inseridos na filmografia de Chaplin. Em "O Circo" (1928), o “Vagabundo”, ao ser confundido com um ladrão, procura refúgio no espetáculo circense, ao fugir de uma perseguição policial. Suas atrapalhadas gagues provocam o divertimento do público e incentivam o diretor do estabelecimento a contratá-lo como um palhaço. Como não consegue imitar os já existentes no circo, o chefe acaba empregando-o como um simples servente, para não faze-lo perceber de que é a principal atração. Não deveríamos esquecer que o drama desse filme também repousa sobre uma história de amor constituída ao redor de um triângulo composto pelo equilibrista, a bailarina e o vagabundo. Os sentimentos que este último prova pela jovem mulher, são de uma fraternidade sem fim, o que justificaria certamente as lágrimas tão logo o filme acabe.

Como podemos perceber, a história é nitidamente simples, mas o que mais me surpreendeu no filme foi a sutil crítica feita à sociedade capitalista norte-americana. E, de fato, Chaplin sempre foi um defensor incansável das lutas pela igualdade social (o que acabou reservando o seu nome na lista negra de Joseph McCarthy, conhecida como “os dez de Hollywood”), sendo rotulado de comunista por filmes como "Tempos Modernos". A meu ver, a metáfora do modo de produção capitalista foi magistralmente retratada n’O Circo. Filme esse que, diga-se de passagem, antecedeu o próprio “Tempos Modernos” (“O Circo” é de 1928 enquanto “Tempos Modernos” data de 1936).

Vejamos tal metáfora no prisma sociológico: o intransigente e violento dono do circo assume o papel de empresário, detentor dos meios de produção, que se ocupa em controlar os seus empregados. Chaplin é o trabalhador, e mais do que isso, o principal artista sem o qual o espetáculo não existiria, mas que, por não possuir os meios de produção, é explorado e enganado por seu patrão. O alcance de sua liberdade, anteriormente já falado, é a velha união dos trabalhadores. União esta que permitiu o “Vagabundo” a enxergar seu verdadeiro valor quando a bailarina, filha do dono do circo, resolve lhe informar do seu verdadeiro papel no circo. Por sua vez, Carlitos a ajuda a se casar com o equilibrista, fugindo do domínio paterno. O dono do circo tem um capataz, que usa de violência para se fazer obedecer. Cabe lembrar que ser capataz não retira o seu papel de oprimido. É o oprimido reprimindo os oprimidos, em detrimento do poder, e pouco importa se está ignorando as manifestações dos trabalhadores em busca de condições mais dignas.

E o que dizer da metáfora da posição do trabalhador ante a postura desumana de seus chefes? A seqüência em que Carlitos se vê obrigado a subir na corda-bamba para manter o seu emprego é inesquecível, tanto no aspecto da crítica social que é feita, quanto no aspecto formal. Se também fôssemos atrás de uma análise mais profunda, poderíamos interpretar esta seqüência como uma alegoria do equilíbrio que o cineasta instaura entre o burlesco e o drama de sua obra. Daí a genialidade deste filme, que se apóia sobre o desenvolvimento destas duas metáforas.

Desde o encerramento das filmagens de “Em busca do Ouro” (1925), Chaplin veio desenvolvendo o projeto d’O Circo (que originalmente era intitulado como “O Palhaço”). Para interpretar a bailarina, ele contrata Merna Kennedy – atriz que não tinha experiência alguma diante às câmeras. Bom… sabe-se que Chaplin tinha fama de mulherengo e, meu Deus, como ele gostava de garotas! O fato é que o marido dela acusou Chaplin de adultério com a jovem Merna (que, na época, tinha apenas 18 anos). Tal escândalo foi prato cheio para os inimigos de Chaplin, que espalharam a notícia com uma conotação maldosa, fazendo do pequeno caso um escândalo nacional. Atacado por todas as partes da sociedade, Chaplin interrompe as filmagens do Circo, deixando na casa de seu advogado os negativos já filmados (correspondendo à maior parte do filme). Após seis meses de longa depressão nervosa, a imprensa esquece Chaplin e, assim, no outono de 1927, convoca sua equipe a retomar seu trabalho.

A verdade é que Chaplin enfrentou tantos percalços durante as filmagens d’O Circo. Além da confusão com o suposto envolvimento com Merna Kennedy, Chaplin ainda teve que superar a destruição de seu estúdio, que foi levado aos ares depois de uma tempestade que atingiu Califórnia. Depois de um mês do desastre, recebeu a má notícia de que boa parte de seu filme tinha se estragado por erro de manipulação no laboratório.

E lá se vai Chaplin convocando a sua equipe (já cansada) para retomar as filmagens de seu caótico filme. E não teve dó ninguém mesmo. Perfeccionista ao extremo, Chaplin foi capaz de rodar 200 vezes a seqüência em que Carlitos (o próprio Chaplin, sem nenhum dublê) entra por engano na jaula do leão. Sem contar que a seqüência em que o mesmo se equilibra na corda-bamba, com aqueles macaquinhos atazanando sua concentração, chegou a marca de 700!!! Botou Kubrick no chinelo!!! É… Chaplin, na tentativa de dar um ar mais realista ao seu filme, acabou se submetendo a arranhões do leão e a várias mordidas dos pequenos (e endiabrados) macaquinhos, o que acabou deixando-o hospitalizado durante 6 semanas. E exatamente depois dos seis semanas de recuperação, o convalescente Chaplin, ansioso em terminar logo seu conturbado projeto, ainda enfrenta uma outra catástrofe com o seu estúdio, que se incendeia durante as filmagens. Quando finalmente chega na seqüência final, Chaplin ainda levou outro golpe. As carroças necessárias para o desfecho da história haviam sido roubadas por um grupo de estudantes embriagados que, se não fosse as intervenções do próprio Chaplin, haveriam ateado fogo.

Só no final de 1927 que Chaplin pôde respirar. Ao final de contas, foram 2 anos de muito estresse. O suficiente para Chaplin nem mencionar “O Circo” em suas memórias em 1964 (História de Minha Vida). Contudo, vale lembrar que “O Circo”, é, sem sombra de dúvida, um dos mais belos filmes já feito sobre o sutil equilíbrio entre a comédia e a tragédia, capaz de botar em foco assuntos tão polêmicos como a opressão dos trabalhadores, bem como o olhar de Chaplin perante a indústria do entretenimento.

Se tivesse que escolher uma das várias cenas magistrais deste filme, escolheria a seqüência em que ele é trancado com uma fera: ao fugir do cavalo, o Vagabundo acaba entrando na jaula do leão e, sem titubear, tenta sair por um pequeno alçapão que leva à jaula do tigre. Sem saber o que fazer, decide se aquietar na jaula para não entrar em desespero ainda maior. Porém, um cachorro vira-lata (desses que implicam com todo mundo) chega do nada só para latir em frente à jaula em que Chaplin (o próprio) estava preso. Pouco depois chega a bailarina que, ao invés de tentar socorre-lo de imediato, desmaia de susto. São os 5 min. mais tensos e engraçados que já vi em toda minha vida. A cena em que Chaplin se equilibra na corda-bamba enquanto aqueles macacos se agarram à sua cabeça, é tão magistral quanto a anterior! Um sucesso garantido pela harmonia entre a comédia e o drama. Na corda-bamba da vida, Chaplin nos deixou seu legado de mais de 81 filmes tão bons quanto “O Circo”. Encerro esse artigo (que de tão longo, não me surpreenderia se alguém me dissesse que não conseguiu lê-lo todo) com as palavras de um dos melhores cineastas de todos os tempos: “na criação da comédia, por mais paradoxal que possa parecer, o senso do ridículo é estimulado pela tragédia. O ridículo, creio, contém um desafio: devemos rir do nosso próprio desamparo para não enlouquecermos”. Sem mais comentários!!!

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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