Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 25 de outubro de 2022

A Casa do Dragão (HBO, 2022): entre novos acertos e antigos erros, série renova interesse em Game of Thrones

Prequel focado nos Targaryen convida expectadores a embarcarem em uma nova jornada no Mundo de Gelo e Fogo, e mesmo com alguns tropeços no caminho, promete as mesmas emoções dos tempos de ouro da série original.

Quando “Game of Thrones” chegou ao fim em seu rejeitado último episódio exibido em 2019, muitos fãs se sentiram traídos. Para uma série que começou como marco na cultura pop, atraindo um investimento emocional reservado a poucos universos fantásticos, seu finale não só deixou a desejar como peça audiovisual, mas foi uma decepção para com sua própria história. Um retrato perfeito de showrunners que desistiram da obra que se propuseram a adaptar. Então, quando “A Casa do Dragão” foi anunciada, com o gosto amargo ainda forte na memória, a desconfiança era o principal sentimento. Talvez tenha sido essa a principal vantagem da nova série da HBO, que em sua estreia só precisava ser melhor do que sua antecessora foi em seu fim. Mas a produção decidiu ir além, trazendo de volta a sensação única que só um dominGoT pode proporcionar, revivendo a paixão daqueles que sentiam falta do Mundo de Gelo e Fogo.

Quase duzentos anos antes de Daenerys Targaryen, Westeros passou por um período turbulento conhecido como Dança dos Dragões, guerra civil entre membros da família Targaryen na disputa pelo Trono de Ferro. Registrado no livro Fogo e Sangue, escrito pelo próprio George R.R. Martin, o evento representa o início do fim da dinastia dos dragões, em uma história trágica cuja conclusão já é conhecida. Mas a Dança de fato ainda há de acontecer, pois o que esta primeira temporada de “A Casa do Dragão” faz é colocar as peças para um conflito que promete muito… fogo e sangue. Assim, é justo dizer que, mesmo com seus momentos de impacto, essa temporada de estreia parece menos atrativa para aqueles que passaram por tantos picos de emoção com “Game of Thrones”.

Porém, antes de ser explosiva, a série-mãe era cheia de intrigas e traições veladas (ou nem tanto), e é ao trazer isso de volta que a nova produção brilha. A trama começa com uma questão de sucessão que o rei Viserys Targaryen precisa resolver, pois sem filhos homens, o monarca tem apenas sua jovem filha Rhaenyra como possível sucessora direta, e seu inconsequente irmão Daemon Targaryen como primeira alternativa viável por ser homem. Ao perder sua esposa, e mãe de Rhaenyra, no parto do que viria a ser o príncipe herdeiro, Viserys eventualmente nomeia sua primogênita como sucessora, quebrando o precedente estabelecido por seu antecessor de que o trono deveria passar de homem para homem. Embora esta decisão pudesse ser problemática para seu reinado, o perigo real (trocadilho intencional) nasce quando ele decide se casar de novo, logo gerando filhos que poderiam roubar o direito ao trono da princesa. Não só isso, Viserys se casa com Alicent, melhor amiga de Rhaenyra, gerando uma dinâmica friends (ou lovers?) to enemies com grande peso no desenvolver da trama. Em suma, uma grande novela — e das melhores.

Uma obra assim só funciona se seus atores estiverem dispostos a comprar as motivações de seus personagens, sejam elas questionáveis como forem. E que elenco excelente foi formado para “A Casa do Dragão”. Ao começar por Paddy Considine como rei Viserys, que junto à profundidade concedida pelo roteiro, pôde criar um personagem capaz de fazer inveja ao próprio Martin, que confessou ao ator ter preferido a versão da tela à de sua própria autoria. Steve Toussaint e Eve Best surpreenderam como os coadjuvantes Corlys Velaryon e Rhaenys Targaryen por mostrarem uma ótima química como um casal firme em seus propósitos (mas que também adora uma ocasional fofoca), e Matt Smith calou a boca de todos que duvidaram de suas chances como Daemon (esta que vos fala inclusa) ao trazer as características icônicas já esperadas do Príncipe Rebelde, mas dando nuances de performance que silenciosamente mostram o humano por trás do Targaryen sanguinário. Os Velaryon e Daemon possuem bons momentos de destaque nos empolgantes episódios 2 e 3, dirigidos por Greg Yaitanes.

Mas, a série nunca deixa de ser sobre Alicent e Rhaenyra, e as pessoas que deram vida a elas merecem o destaque que lhes é devido como protagonistas. Os cinco primeiros episódios mostram elas jovens, com Milly Alcock (Rhaenyra) e Emily Carey (Alicent) em cena. Alcock fez um trabalho tão marcante e digno de elogios que o público chegou a se preocupar sobre quem viria a sucedê-la. Mas Emma D’Arcy não ficou para trás, assumindo o papel a partir do sexto episódio e entregando uma performance ao mesmo tempo vulnerável e poderosa. Já Carey pode ter tido menos material para desenvolver sua Alicent, retratando um momento contido de sua vida, mas essa base foi essencial para que a personagem pudesse ser mais do que apenas uma vilã. Assim, a transição para a versão adulta interpretada por Olivia Cooke ganha um impacto ainda maior, mostrando a transformação de uma jovem passiva frente a seu destino a alguém que decide tomar as rédeas de sua própria vida.

Enquanto a passagem de tempo foi usada de forma satisfatória para desenvolver as protagonistas individualmente, o mesmo não se pode dizer sobre certos personagens que precisavam de tempo maior de tela para que o público pudesse desenvolver um vínculo afetivo. Um dos defeitos apontados durante a exibição da série é a ausência de pessoas para quem torcer, e embora ache isso debatível, é verdade que falta espaço para que alguns momentos surtam o efeito desejado. Isso é sentido principalmente no episódio 6, o primeiro da fase adulta de Rhaenyra e Alicent, que retornam depois de 10 anos inteiros de história que nunca foi mostrada e que acaba fazendo falta. Os Strong e os filhos de Corlys e Rhaenys mereciam mais destaque, e a opção de não aprofundá-los, e em vez disso explorar mais de outros personagens que terão mais importância no futuro, é uma das escolhas que demonstram a aparente vontade dos produtores de dar justificativa a um conflito que é (ou deveria ser) inerentemente egoísta.

A questão é que o livro Fogo e Sangue não é uma narrativa como nas Crônicas de Gelo e Fogo, e sim um registro histórico dentro do universo, com um meistre relatando aquilo que sabe, ou que leu de outras fontes — algumas não confiáveis e outras totalmente tendenciosas. Assim, a série tem de seguir um caminho de escolhas narrativas, automaticamente optando pelas versões históricas que mais fazem sentido com aquilo que querem contar. É uma forma brilhante de deixar no escuro até quem já leu o livro, prometendo fatores surpresas e novos significados para elementos que já conhecemos de “Game of Thrones”. Mas é algo também que Ryan Condal, criador e showrunner de “A Casa do Dragão”, precisa tomar cuidado no caminho à frente. Prequels são sempre perigosos por trazerem consigo a possibilidade de arruinar um futuro já conhecido, e aqui não é diferente. Com sua pouca experiência e projetos um tanto questionáveis no currículo, Condal ganhou o voto de confiança de George Martin para capitanear a nova série, e isso deve ser respeitado. Mas o espaço para desconfiança existe, e o showrunner ainda precisa provar seu valor.

Dito isto, elogios devem ser feitos à equipe da série, com mais mulheres no roteiro e direção. Clare Kilner foi o destaque, comandando os episódios 4, 5 e 9, com Geeta Vasant Patel ficando a cargo do 8, e quatro roteiristas mulheres trabalhando nesta primeira temporada, avanço essencial quando as protagonistas precisam de visões femininas para não caírem nas armadilhas de sempre. E mesmo com esforços notáveis para que antigos erros de “Game of Thrones” não fossem cometidos novamente, a violência contra mulheres ainda se faz presente na série, então imagine se a história fosse desenvolvida apenas por homens. O abuso, moral e físico, ainda defendido como parte “daquela época”, de fato tem seu papel na história de mulheres em ascensão, mas chega um ponto em que vale questionar se isso não passa de um fetiche repetitivo.

No entanto, há heranças positivas da série-mãe. A primeira delas sendo a direção de Miguel Sapochnik (Hardhome, The Battle of the Bastards), que se faz marcante principalmente no primeiro episódio — uma sólida estreia — e no excelente episódio 7, talvez o melhor da temporada. A outra herança, não menos importante, é o trabalho do compositor Ramin Djawadi, a garantia de qualidade que mesmo no decadente fim de “Game of Thrones” entregou uma trilha sonora de alto nível. Sua abordagem em “A Casa do Dragão” pode parecer estranha em uma análise superficial, mas contém a mesma rica quantidade de temas e ideias que ele sempre entregou.

O Jogo dos Tronos está de volta, e ele o convida a escolher um lado. Desta vez, não há a ameaça vinda do Norte que o obrigue a torcer pelo bem, e qualquer lado que for escolhido derramará sangue inocente. Uma empolgante chance de se deixar levar por uma história não de heróis ou vilões, mas de tudo o que houver no meio disso. No final, a decepção é certa, seja por mais uma história que não se completou como devia, ou pela perda de personagens amados. Mas no caminho até lá, vários novos momentos inesquecíveis nos aguardam.

“Devemos começar?”

Louise Alves
@louisemtm

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