Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 27 de abril de 2021

Nós Duas (2019): intrigante e comovente história de um amor proibido

Um raro exemplo de romance na maturidade, esta obra traz duas mulheres à beira de viverem plenamente seu amor, mas que encontram um obstáculo que compromete seus planos para o fim da vida.

O cinema é repleto de histórias de paixões impossíveis, mas poucas tratam do amor durante uma fase mais tardia da vida e uma minoria aborda relacionamentos homossexuais na terceira idade com naturalidade. “Nós Duas” é um ótimo exemplar deste pequeno conjunto de filmes. Esta produção francesa é a obra de estreia do diretor italiano Filippo Meneghetti e fala sobre duas mulheres, vizinhas e amantes em segredo por anos, prestes a realizar o sonho de se mudarem para Roma.

Nina (Barbara Sukowa) vive sozinha no apartamento ao lado de Madeleine (Martine Chevallier). Ambas mantêm seu relacionamento amoroso sem qualquer suspeita da família de Madeleine. Após o falecimento de seu marido, finalmente elas têm a oportunidade de vender seus apartamentos e se aposentarem na Itália. No entanto, a hesitante Madô ainda precisa comunicar aos filhos sobre a decisão, além de assumir sua sexualidade, mas o destino lhes traz um inesperado obstáculo fatal.

O drama é acentuado e enriquecido pelo roteiro também assinado por Meneghetti e Malysone Bovorasmy. O que poderia ser uma história apropriada para o teatro é realçado pela potência do cinema. Em especial, pelo design sonoro que não perde oportunidade para ser um elemento narrativo das cenas. Uma frigideira queimando, um alarme sonoro ou o tique-taque de um relógio, por exemplo, possuem mais significado do que parecem ter.

Além disso, o que poderia ser um melodrama nas mãos de Almodóvar ganha aspectos mais naturais pela direção dos atores. As protagonistas possuem caracteres imperfeitos que complicam suas trajetórias, mas o amor entre elas tem o equilíbrio e a sensibilidade necessários para a identificação do público. Qualquer um que já tenha sido surpreendido pelo destino, e teve sonhos interrompidos sem a possibilidade de retomá-los, pode se ver na pele do casal. Ao tentar poupar sua família de grandes traumas, Madeleine coloca em risco o futuro que desenhou com Nina.

“Nós Duas” também recebe tons angustiantes ao acompanhar a perspectiva de Nina, que se vê à beira do desespero quando seus planos não se realizam. Sem poder prosseguir com Madeleine como desejava, só lhe restam atitudes extremas para tentar resgatar o que possuíam e retomar a vida como planejavam. É quando o filme escurece sua fotografia e empurra Nina para dilemas morais crescentemente agudos e desconcertantes. As ações de Nina e Madeleine também posicionam a obra no campo de um thriller psicológico, com a câmera de Filippo e os caminhos do roteiro realçando os anseios e as frustrações do casal sem a passividade de um mero espectador.

Uma camada extra de interpretação pode ser dada à condição de saúde de Madeleine. De certa forma é uma representação muito clara, quase óbvia, de alguém paralisado por uma decisão difícil a ser tomada. A aparente inação da personagem empurra quase toda a agência da história para Nina. No entanto, o destino do casal ao final da história depende exclusivamente da transformação da personagem mais frágil.

Com belas e vívidas atuações, a dupla de atrizes conquista os espectadores e retrata um relacionamento puro e comovente. A sensibilidade de Meneghetti coloca o público na pele do casal “proibido” e entrega um conto de desejo e busca pela felicidade com um roteiro envolvente, fazendo ótimo uso dos elementos cinematográficos a favor da história. Um excelente filme de estreia e também uma das melhores produções francesas do ano.

William Sousa
@williamsousa

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