Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 25 de abril de 2021

O Homem que Vendeu sua Pele (2021): esfolado vivo

Retrato pitoresco, com toques de conto de terror, de um refugiado sírio que vende o próprio corpo a um artista em busca da mulher amada.

O Homem que Vendeu Sua Pele” começa na Síria, em 2011, e acompanha a trajetória de fuga e luta pela sobrevivência do refugiado Sam Ali (Yahya Mahayni), que escapa para Beirute, Líbano, depois de ser preso e torturado pelo governo por incitar a revolução num trem (na verdade, ele estava apenas fazendo uma cena romântica para a namorada). Subempregado em uma indústria granjeira, ele assiste pela TV a devastação de seu país pela guerra civil, o avanço do grupo terrorista Estado Islâmico, e acompanha pela internet a vida de sua namorada, agora casada com um embaixador sírio e vivendo em Bruxelas. Disposto até a vender sua alma ao diabo para recuperar a mulher amada, Sam Ali vende seu corpo, mais especificamente a pele de suas costas, a um artista visionário (Jeffrey Godefroi) em troca de um visto belga. Com isso, o refugiado se torna peça de arte, circulando entre museus e excêntricos colecionadores particulares da Europa, cada vez mais arrependido de seu nefasto acordo.

O filme de Kaouther Ben Hania faz história ao ser o representante da Tunísia na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Internacional 2021 e é uma entre as quatro produções indicadas deste ano dirigida por uma mulher (as outras são “Bela Vingança, de Emerald Fennell;Nomadland“, de Choé Zhao; e “Quo Vadis, Aida?”, de Zasmila Zbanic). A história é livremente inspirada no caso de Tim Steiner, que serviu de “quadro vivo” ao artista visual Wim Devolye em 2006.

Iconoclasta na paleta e fotografia, assinada por Christopher Aoun (“Cafarnaum“), o filme de Kaouther é uma obra de arte cheia de estilo e metáforas, a começar pelo personagem de Godefroi (o ótimo Koen De Bouw), o artista a quem Sam Ali vende sua pele. Seu personagem é quem nos introduz a trama e depois se apresenta ao protagonista como “uma espécie de Mefistófeles”, o demiurgo da clássica obra Fausto, de Goethe. Seu figurino todo preto e lápis nos olhos constroem sua caracterização demoníaca, e ele tem como par Soraya (Monica Bellucci), merchant do artista e espécie de Cérbero, o cão que guarda as portas do inferno, de suas obras ousadas e polêmicas.

Por trás de uma rica paleta, do bom uso de reflexos e dos flares que invadem a tela está uma crítica poderosa a objetificação das pessoas. Sam só se torna livre para circular pela Europa quando é transformado em commodity por Godefroi. Seu valor aumenta exponencialmente quando ele se torna um canvas para a pintura do renomado artista. Como peça de museu, Sam tem que sujeitar a passar longas horas de cabeça baixa em um totem de exposição, enquanto turistas tiram fotos ou riem da arte tatuada em suas costas.

A história se perde em camadas depois do poderoso primeiro ato, que revela os maiores desafios na jornada do herói, limitando-se, depois, aos desafios de sua experiência como objeto de arte e à busca clichê por recuperar a mulher amada. O final, porém, surpreende pela ousadia em trazer uma solução drástica – alguns poderiam até dizer de mau gosto – para seus problemas. O visual impactante, a ótima atuação de Yahya Mahayni e do elenco de apoio, e a direção estilosa de Kaouther garantem que o filme não passe despercebido.

O retrato kitsch, até mesmo brega, de uma burguesia europeia consumidora de arte é a sutil provocação do roteiro de Kaouther ao histórico europeu de se apropriar (muitas vezes roubando) obras de arte pelo mundo para expor em suas exuberantes coleções e portentosos museus. Mais do que isso, o filme trata da exploração do homem pelo homem, que submete aqueles “que nasceram no canto errado do mundo”, como diz Sam Ali, a terem que vender o próprio couro para tentar sobreviver.

Vinícius Volcof
@volcof

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