Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem (Netflix, 2020): imprescindível

Documentário estrelado pelo rapper Emicida aborda com leveza a herança cultural afro-brasileira e seu vasto legado.

Entre idas e vindas no tempo, o documentário da Netflix “Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem” traça com exímia fluidez diversos paralelos entre o presente e o passado, focando na luta de personalidades negras que com muita coragem e determinação abriram caminho para as futuras gerações. Seguindo essa abordagem, o estreante na direção, Fred Ouro Preto, adota uma estrutura narrativa não linear e fragmentada que visa sobretudo explicar o fenômeno que culminou no show do rapper Emicida em 2019 no Theatro Municipal de São Paulo – espaço majestoso frequentado majoritariamente pela elite branca paulistana, muito embora construído e arquitetado por pessoas pretas convenientemente apagadas da nossa história.

A trama formalmente recorre a um modelo dividido em três atos, batizados pela obra como Plantar, Regar e Colher, que atendem ao propósito de organizar as sequências que alternam entre breves animações meramente ilustrativas, imagens de arquivo de acontecimentos históricos, cenas dos bastidores em estúdio e a gravação da apresentação do músico no teatro. Tudo devidamente amarrado pela narração de Emicida que, apesar de se tornar famoso justamente por travar intensos duelos contra outros MCs, finalmente apresenta sua faceta serena e conciliadora, guiando o público rumo a um intenso e emocionante resgate da cultura negra brasileira, cujas raízes são muito mais profundas do que a maioria de nós sequer imagina.

Embora falte ousadia e uma maior inspiração por parte da direção, um tanto quanto formulaica demais para a proposta do documentário, o ritmo da montagem e edição tornam a experiência em geral consistente e prazerosa. Além disso, o texto nunca se perde em divagações desnecessárias ou incluídas à toa de modo abrupto. Cada linha de diálogo possui seu devido propósito e contexto, movendo a trama sempre adiante. Também há um minucioso trabalho de pesquisa, no qual muitos dos fatos apresentados se conectam de maneira bastante orgânica, apesar de inicialmente soarem dissonantes. Um bom exemplo disso é a inusitada correlação que o filme sugere entre o recente surto de COVID-19 com o surgimento do grupo musical Oito Batutas, formado em meio à pandemia da Gripe Espanhola, em 1919.

Como um prisma que absorve luz branca e a converte em todas as demais cores, a fotografia do longa-metragem utiliza imagens em preto e branco, cuja cor branca é levemente acentuada, para retratar acontecimentos do passado em contraponto a uma paleta de cores variadas e vibrantes ao se referir ao presente. Assim se denota um certo otimismo e fé que o amanhã será melhor que ontem, ou para além disso, propondo que só é possível corrigir os erros do passado olhando para o agora.

A trilha sonora é composta inteiramente por músicas do profético álbum “AmarElo”, justificando assim parte do título da produção. Em vez de somente ambientar, as canções cumprem o papel essencial de conduzir a narrativa, ditando os temas de cada segmento e colaborando na conclusão dos arcos de maneira catártica. Assim como a narração que passeia sem pudor entre diferentes períodos, os ritmos musicais também aderem a tal proposta, mesclando rap e samba e batizando o resultado de neo-samba, uma vez que, segundo o narrador, os antigos sambistas já tocavam algo semelhante ao rap muito antes do gênero ser criado nas periferias estadunidenses, algo bem emblemático que reforça ainda mais o sentido da obra.

Imprescindível, o documentário “Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem” é um valioso registro histórico sobre a negritude e seus impactos na cultura brasileira. Transitando entre épocas diferentes, a narração ágil aliada à edição fluída obtém êxito tanto em informar quanto em emocionar o público. Possivelmente, até aqueles que pouco ou nada sabem sobre o álbum que dá título à obra. De antigos artistas negros à Emicida, o filme condensa mais de cem anos de história em cerca de 90 minutos, culminando finalmente no apoteótico show do rapper que, em alto e bom som, convida todos a refletirem sobre o agora, para que o passado nunca mais volte a ser o amanhã.

Alan Fernandes
@alanfdes

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