Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 10 de novembro de 2020

O Clube dos Canibais (2018): sexo, sangue e sátira à moda brasileira

Realizado por Guto Parente, este ousado terror brasileiro traça uma boa mistura de horror e sátira através de um inesperado casal de protagonistas.

*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.

Com um título como este, “O Clube dos Canibais” pode gerar a expectativa de um sangrento gore apelativo. Porém, surpreendentemente, ele é tanto uma história de amor e uma crítica social quanto mórbido. Nele, o horror abraça a metáfora da exploração entre classes e o canibalismo se torna uma representação dos abusos cometidos pela sociedade brasileira contra grupos desfavorecidos.

Escrito e dirigido por Guto Parente, a história é liderada por um casal da classe alta cearense com um apetite diferenciado. Otávio (Tavinho Teixeira) trata seus funcionários como se fosse seu mestre, cuidando, humilhando e descartando na mesma medida. Apesar de tratar sua esposa Gilda (Ana Luiza Rios) com misoginia, seu relacionamento sexual é bem “saudável”: ele encontra prazer no cuckolding, assistindo escondido sua mulher atrair empregados para cama. E a perversão dos dois não para por aqui.

Sob um aspecto que orgulhosamente lembra “Corra!” de Jordan Peele, o cineasta se utiliza do horror para retratar como a estratificação social brasileira esconde abusos debaixo de uma suposta hierarquia, onde os que estão embaixo são automaticamente menores e insignificantes. O diretor expõe a hipocrisia de uma alta sociedade, ironicamente, com o doutor Otávio e a madame Gilda como “anti-heróis” protagonistas, pois eles também fazem parte de uma longa cadeia de submissão.

Surge enfim o verdadeiro “clube dos canibais”, um pequeno grupo de homens da elite que se reúne secretamente para presenciar atrocidades que deixariam Eli Roth e Quentin Tarantino bastante excitados. O líder do grupo é Borges (Pedro Domingues), um grande político influente no Ceará. Comparado a Otávio, que também faz parte do clube sem sua esposa (afinal ela é mulher), Borges tem muito mais poder pela região, o que coloca os protagonistas na posição do “meio” nessa hierarquia cruel.

A produção faz referência a um grupo que existiu na era vitoriana do Reino Unido, formado por intelectuais que se reuniam para compartilhar ideias polêmicas demais para a sociedade da época. Enquanto na vida real não há registro de canibalismo cometido pelo famoso grupo, Guto Parente expande esse conceito antropofágico. Afinal, quando se explora alguém e vive à sua custa, de certa forma, trata-se de um tipo de canibalismo.

Quando Gilda descobre sem querer um segredo de Borges e conta para o marido, Otávio se inclina à paranoia com medo de serem eliminados pelo perigoso chefão. É assim que se cria uma certa empatia pelo casal, que permanece unido e fiel a seus valores, mesmo que em meio à perversão e à degradação moral. Por um lado o público torce para que eles prevaleçam perante ao mal pior, por outro também se quer que eles recebam a punição devida. Dessa forma, o filme se encaminha para um sangrento e esperado showdown.

A experiência de Guto como montador de filmes é refletida na energia da decupagem do filme. Enquanto a introdução é enérgica, chocante e apresenta o tom, ela ganha o tempo necessário para abordar a crítica social sem que se sinta falta do horror proposto inicialmente. A ambientação em Fortaleza traz um tempero brasileiro à produção, tendo uma seleção de bons atores locais que compensam o diálogo por vezes truncado. E para somar na construção do clima de riqueza desajustada, as composições de Fernando Catatau trazem um toque de jazz para a trilha sonora.

Mesmo com os efeitos nas mãos do talentoso Rodrigo Aragão, o gore não é tão apelativo quanto poderia ser e isso é bom para não arriscar desequilibrar a forma híbrida do terror satírico. Considerando a forma com que a carnalidade animal é exposta, “reduzindo” pessoas à sua nudez e instintos, existe uma clara tendência artística no cinema brasileiro contemporâneo em utilizar este recurso para denunciar no terror a hipocrisia das diferenças sociais. Os mesmos elementos são vistos em “Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e em “O Animal Cordial” de Gabriela Amaral Almeida.

Logo, é através da ousadia em utilizar o horror gráfico que se pinta uma boa e necessária crítica social, a partir de um interessante casal de protagonistas de moral invertida que tinha tudo para cair no estereótipo do “doutor” e da “madame”.  Com isso, Guto Parente e seu “O Clube dos Canibais” marcam um ponto na inspirada safra do terror brasileiro do fim da década de 2010 e merecem ser vistos.

William Sousa
@williamsousa

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