Uma história sobre maturidade, infância e pobreza para mostrar que crianças são sempre crianças.
Algumas infâncias são como navios navegando em águas rasas, com calmaria e colete salva-vidas. Cada milha pode ser planejada e erros são corrigidos com a embarcação em repouso. O risco é mínimo e a chegada é garantida. No entanto, o filme “Crianças do Sol” aborda outro tipo de infância, em que um barco de papel enfrenta maremotos e vagalhões, cada movimento com o leme é uma escolha sem volta e um erro pode ser fatal.
O longa acompanha a vida de um garoto de 12 anos chamado Ali (Roohollah Zamani) e seus três melhores amigos. Eles trabalham juntos e cometem pequenos crimes para sustentar as famílias até que Ali é incumbido por um grande criminoso local a encontrar um tesouro perdido. Para isso, os meninos precisam se matricular na Escola do Sol, uma instituição de caridade que usa a educação para tirar meninos da rua e do trabalho infantil, pois o túnel que leva à recompensa está embaixo deste local.
A atmosfera do filme remete a clássicos americanos sobre a juventude, como “Goonies” e “Conta Comigo”. O clima otimista aparece categórico nos momentos iniciais da trama. O bonito plano aberto que mostra as crianças tomando banho e brincando numa fonte é um convite encantador para um universo esperançoso. Aos poucos, parece-se desenhar uma história que casa com os melhores momentos da Sessão da Tarde.
Essa impressão inicial, porém, é desfeita rapidamente, pois não demora para que aconteçam rupturas significativas na premissa. Aquela aventura divertida se transforma em um drama rígido. Os ritos necessários para a formação da maturidade, como brincar, estudar e “ser uma criança”, são substituídos por demandas suntuosas cujas maiores recompensas se resumem à sobrevivência.
A inocência das crianças é aterrada pela dureza da vida. Por isso, não é estranho quando Ali acata a ordem para encontrar um questionável tesouro sem pestanejar. Entrar numa escola apenas para tentar surrupiar uma riqueza financeira reflete a necessidade que as crianças têm de um retorno imediato, já que não possuem o luxo de batalhar por uma recompensa a longo prazo.
Nesta realidade, a instituição de ensino, sempre abarrotada de alunos, parece um refúgio dos percalços que as crianças precisam se deparar no cotidiano, o que é refletido em alguns arcos paralelos que aprofundam as personagens. O sentimento de abrigo se torna ainda mais forte quando conhecem Mr. Rafie (Javad Ezati), um dos coordenadores da escola e alguém disposto a ajudá-los numa possível transformação pessoal.
A ambientação do filme é muito bem feita, refletindo o cuidado e a preocupação da equipe com os cenários e todos os aspectos de produção. Ponto para os detalhes em ambientes fechados, onde o diretor utiliza magistralmente os elementos e objetos cenográficos para evocar sensações claustrofóbicas e estonteantes. A câmera também merece destaque, pois o contraste entre planos abertos e fechados reitera o aspecto profundo e íntimo dos personagens, mesmo que eles pareçam tão desinibidos.
Por se passar no Irã, o filme apresenta uma cultura completamente diferente da brasileira, com costumes e tradições que causam um certo estranhamento à primeira vista. E essa atmosfera, por si só, já introduz algumas perspectivas importantes, mas que são pouco comuns ao olhar ocidental. O embate entre iranianos e refugiados afegãos, por exemplo, alimenta um arco comovente da narrativa, e é impossível ignorar a pouca participação de mulheres na obra.
No entanto, ainda que o idioma persa fortaleça as distinções, o filme mostra que o país possui semelhanças gritantes com o Brasil. A desigualdade social e a falta de oportunidades empurram milhares de crianças talentosas para um universo de trabalho infantil, ilegalidades e desperdício de potencial. Uma cena que se passa no metrô, particularmente, é simétrica ao que se vê diariamente nas capitais brasileiras.
Carregado de simbologias, o longa ainda aborda temas complexos, como abandono parental, desigualdade social, xenofobia, amadurecimento precoce e trabalho infantil. Essa amplitude de assuntos retratados em um filme com pouco mais de uma hora e meia provoca uma negligência inevitável de alguns deles e, inevitavelmente, algumas pontas ficam soltas. Há, também, conveniências no roteiro e a amarração não é tão satisfatória.
Exibida na 44ª Mostra de Cinema de São Paulo, a obra ganhou os prêmios de Melhor Filme, Melhor Roteiro e Melhor Design de Produção no Fajr Film Festival, o maior festival anual de cinema do Irã, além de outras oito indicações. O filme também integrou o Festival de Veneza de 2020, quando recebeu indicação ao Leão de Ouro – o diretor Majid Majidi ganhou a Lanterna Magica Award e o protagonista Roohollah Zamani venceu o Marcello Mastrioanno Award, concedido ao melhor ator em ascensão do festival.
Se fosse obra de um estúdio de Hollywood, certamente estariam preparando uma continuação, principalmente pelo carisma dos personagens secundários. A discordância do ambiente escolar com a linguagem adulta é muito agradável. E, ainda que esteja em um contexto bem diferente do que estamos habituados, alguns momentos emblemáticos colocam “Crianças do Sol” na prateleira dos grandes clássicos sobre juventude.