Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 01 de novembro de 2020

Crianças do Sol (2020): a infância no Irã sob olhos amargos

Uma história sobre maturidade, infância e pobreza para mostrar que crianças são sempre crianças.

Algumas infâncias são como navios navegando em águas rasas, com calmaria e colete salva-vidas. Cada milha pode ser planejada e erros são corrigidos com a embarcação em repouso. O risco é mínimo e a chegada é garantida. No entanto, o filme “Crianças do Sol” aborda outro tipo de infância, em que um barco de papel enfrenta maremotos e vagalhões, cada movimento com o leme é uma escolha sem volta e um erro pode ser fatal.

O longa acompanha a vida de um garoto de 12 anos chamado Ali (Roohollah Zamani) e seus três melhores amigos. Eles trabalham juntos e cometem pequenos crimes para sustentar as famílias até que Ali é incumbido por um grande criminoso local a encontrar um tesouro perdido. Para isso, os meninos precisam se matricular na Escola do Sol, uma instituição de caridade que usa a educação para tirar meninos da rua e do trabalho infantil, pois o túnel que leva à recompensa está embaixo deste local.

A atmosfera do filme remete a clássicos americanos sobre a juventude, como “Goonies” e “Conta Comigo”. O clima otimista aparece categórico nos momentos iniciais da trama. O bonito plano aberto que mostra as crianças tomando banho e brincando numa fonte é um convite encantador para um universo esperançoso. Aos poucos, parece-se desenhar uma história que casa com os melhores momentos da Sessão da Tarde.

Essa impressão inicial, porém, é desfeita rapidamente, pois não demora para que aconteçam rupturas significativas na premissa. Aquela aventura divertida se transforma em um drama rígido. Os ritos necessários para a formação da maturidade, como brincar, estudar e “ser uma criança”, são substituídos por demandas suntuosas cujas maiores recompensas se resumem à sobrevivência.

A inocência das crianças é aterrada pela dureza da vida. Por isso, não é estranho quando Ali acata a ordem para encontrar um questionável tesouro sem pestanejar. Entrar numa escola apenas para tentar surrupiar uma riqueza financeira reflete a necessidade que as crianças têm de um retorno imediato, já que não possuem o luxo de batalhar por uma recompensa a longo prazo.

Nesta realidade, a instituição de ensino, sempre abarrotada de alunos, parece um refúgio dos percalços que as crianças precisam se deparar no cotidiano, o que é refletido em alguns arcos paralelos que aprofundam as personagens. O sentimento de abrigo se torna ainda mais forte quando conhecem Mr. Rafie (Javad Ezati), um dos coordenadores da escola e alguém disposto a ajudá-los numa possível transformação pessoal.

A ambientação do filme é muito bem feita, refletindo o cuidado e a preocupação da equipe com os cenários e todos os aspectos de produção. Ponto para os detalhes em ambientes fechados, onde o diretor utiliza magistralmente os elementos e objetos cenográficos para evocar sensações claustrofóbicas e estonteantes. A câmera também merece destaque, pois o contraste entre planos abertos e fechados reitera o aspecto profundo e íntimo dos personagens, mesmo que eles pareçam tão desinibidos.

Por se passar no Irã, o filme apresenta uma cultura completamente diferente da brasileira, com costumes e tradições que causam um certo estranhamento à primeira vista. E essa atmosfera, por si só, já introduz algumas perspectivas importantes, mas que são pouco comuns ao olhar ocidental. O embate entre iranianos e refugiados afegãos, por exemplo, alimenta um arco comovente da narrativa, e é impossível ignorar a pouca participação de mulheres na obra.

No entanto, ainda que o idioma persa fortaleça as distinções, o filme mostra que o país possui semelhanças gritantes com o Brasil. A desigualdade social e a falta de oportunidades empurram milhares de crianças talentosas para um universo de trabalho infantil, ilegalidades e desperdício de potencial. Uma cena que se passa no metrô, particularmente, é simétrica ao que se vê diariamente nas capitais brasileiras.

Carregado de simbologias, o longa ainda aborda temas complexos, como abandono parental, desigualdade social, xenofobia, amadurecimento precoce e trabalho infantil. Essa amplitude de assuntos retratados em um filme com pouco mais de uma hora e meia provoca uma negligência inevitável de alguns deles e, inevitavelmente, algumas pontas ficam soltas. Há, também, conveniências no roteiro e a amarração não é tão satisfatória.

Exibida na 44ª Mostra de Cinema de São Paulo, a obra ganhou os prêmios de Melhor Filme, Melhor Roteiro e Melhor Design de Produção no Fajr Film Festival, o maior festival anual de cinema do Irã, além de outras oito indicações. O filme também integrou o Festival de Veneza de 2020, quando recebeu indicação ao Leão de Ouro – o diretor Majid Majidi ganhou a Lanterna Magica Award e o protagonista Roohollah Zamani venceu o Marcello Mastrioanno Award, concedido ao melhor ator em ascensão do festival.

Se fosse obra de um estúdio de Hollywood, certamente estariam preparando uma continuação, principalmente pelo carisma dos personagens secundários. A discordância do ambiente escolar com a linguagem adulta é muito agradável. E, ainda que esteja em um contexto bem diferente do que estamos habituados, alguns momentos emblemáticos colocam “Crianças do Sol” na prateleira dos grandes clássicos sobre juventude.

Breno Damascena
@brenodamascena_

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