Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 31 de outubro de 2020

Mate-Me Por Favor (2015): visão crua e sombria da adolescência

Coprodução entre Brasil e Argentina encabeçada por Anita Rocha da Silveira flerta com o suspense e o terror surrealista para traçar um perfil da adolescência feminina no contexto da classe média brasileira.

Escrita e dirigida por Anita Rocha da Silveira, “Mate-Me Por Favor” é uma obra particularmente difícil de definir. Lançada no Festival de Veneza em 2015, ela constrói uma atmosfera misteriosa apresentando uma trama sob o ponto de vista de um grupo de adolescentes em meio a uma onda de assassinatos. A protagonista dessa história é Bia (Valentina Herszage), uma menina de quinze anos que desenvolve um interesse mórbido quando a rotina do seu grupo é afetada pela sequência de mortes que acontecem nos arredores do seu trajeto cotidiano entre escola e condomínio. Este é o contexto que a diretora utiliza para explorar sua visão sobre a adolescência.

Em sua proposta, Anita ousa se afastar da estrutura narrativa clássica, pois não estabelece um conflito óbvio para a protagonista nem apresenta atos bem definidos. Em termos gerais, a obra acompanha seus personagens em meio a situações que não estão em conformidade com o mundo a que estão acostumados para então criar um retrato psicológico de uma geração. É nessa desconformidade que o longa apresenta tons enervantes que o aproximam do suspense e do horror, apesar de não obedecer a signos que o classificariam como filme de gênero.

Moradores do Rio de Janeiro reconhecerão não só a ambientação como também faces típicas de jovens da classe média privilegiada carioca e sua subcultura. Bia mora num apartamento de classe média dentre prédios em construção e terrenos baldios num bairro em expansão. O único parente que convive com a menina é seu irmão mais velho, João (Bernardo Marinho). A mãe ausente não retorna para casa e é apenas citada pelos filhos. A propósito, a produção decide reduzir a participação de adultos no elenco a somente vozes eventuais em rádios e alto-falantes pelo colégio de Bia. A preferência pelo ambiente escolar e pela ausência de adultos responsáveis é um elemento característico de filmes de terror adolescente, algo que ajuda a posicioná-lo nesse estilo.

O evento provocador da história também traz consigo outros elementos do horror. No terreno que os alunos precisam atravessar para ir à escola todos os dias, acontece o estupro de uma jovem mulher seguido de morte. O assassinato atrai a curiosidade de Bia e suas amigas, que querem ver o local do crime e saber mais sobre a vítima. De certa forma, é a desculpa que a diretora cria para abordar o tema da maturidade juvenil e de seus corpos. Por exemplo, numa conversa as meninas compartilham sonhos eróticos que começam pela atração de meninos mais velhos, mas terminam com o pesadelo de uma relação forçada. A frustração sobre sexo atinge particularmente a protagonista, que mantém um relacionamento imaturo com seu namorado fixo.

Além do aspecto sexual, a dança e o esporte como aspectos típicos da cultura adolescente também são referenciados: as meninas jogam handebol no colégio; os jovens adultos, que ainda não cruzaram totalmente a barreira do mundo juvenil, escutam funk antigo como uma espécie de resistência à próxima fase; enquanto os adolescentes por sua vez preferem as versões mais recentes do gênero, ensaiando passos durante o intervalo das aulas. A sensualidade do funk invade até os cultos da igreja frequentada pelos alunos.

A narrativa intensifica seus próprios elementos fantásticos quando Bia e suas amigas se deparam com o corpo moribundo de uma das vítimas, que é comparado a uma pomba morta sob o olhar fascinado da protagonista. Posteriormente, numa sequência onírica, a imagem dela está em frente à câmera, como num espelho, coberta por sangue que escorre até completar a tela de vermelho. São maneiras de representar a violência contra a mulher com o mundo real como pano de fundo apesar da fantasia do contexto. O filme não trabalha com espíritos ou possessões demoníacas, mas reflete o medo da selvageria misógina masculina no cotidiano das adolescentes de outras formas menos comuns. Em certo momento, elas comentam que alguns homens se parecem com psicopatas e gostam de ver mulher sofrer. A personagem principal parece esperar que algo aconteça com ela enquanto lida com um crescente interesse mórbido, que flerta com o sadismo.

A obra de Anita continua sua escalada de sutil horror corporal construindo um elo simbólico entre liberdade sexual e punição. Mesmo assim, a busca de Bia por satisfação sexual não resulta em qualquer tipo de julgamento ou castigo indireto à personagem, apesar de estar relacionada à agressividade. Dentre os diversos temas que a autora aborda em sua tese sombria da adolescência, a história segue rumo a um desfecho carregado de simbolismo. Vale o lembrete que “Mate-Me Por Favor” não é um conto comum de início, meio e fim. Desse modo, assim como um filme de David Lynch, este longa nacional de rara ousadia é melhor apreciado sem tais expectativas.

William Sousa
@williamsousa

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