Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Mau-olhado (Prime Video, 2020): de um audiobook para o cinema da Blumhouse

Adaptação televisiva se apoia no material original sem se arriscar em modificar a história para melhor utilizar os recursos narrativos visuais.

O título “Mau-olhado” soa mal, mas é a exata tradução de “Evil Eye“, nome de um dos quatro longas-metragens lançados no mês do Halloween de 2020 pela parceria entre a Amazon Prime Video e a produtora Blumhouse. Diferente dos outros três (“Caixa Preta“, “Noturno” e “Mentira Incondicional“), esta produção traz um olhar sul-asiático, tanto pela equipe quanto pela temática que envolve um pouco da mitologia indiana.

Duas protagonistas dividem o espaço fílmico entre Nova Orleans, nos EUA, e Delhi, na Índia. Após deixar a filha universitária Pallavi (Sunita Mani) na América, Usha (Sarita Choudhury) volta a viver na Ásia com seu amoroso e compreensivo marido. No entanto, ela vive inquieta. Pallavi está prestes a completar 30 anos e ainda não se casou, o que para Usha é preocupante dada a forte cultura do seu povo.

A influência dos pais na formação de um casal indiano é quase a regra, até mesmo no cotidiano das novas gerações de imigrantes pelo mundo. Assim, também é comum que haja bastante superstição em torno do assunto. Não só se faz necessária a proteção de amuletos contra o “mau-olhado”, mas também é importante verificar na astrologia se duas pessoas poderão se dar bem juntas ou não. Esse é o universo de Usha, entretanto, a matriarca traz consigo um trauma fortalecido por esse momento da família. Quando Pallavi finalmente encontra um namorado sério, o quase perfeito Sandeep (Omar Maskati), sua mãe muda de lado e se torna contra o relacionamento devido a segredos do seu passado.

Apesar de a sinopse entregar o detalhe sobrenatural do conto, não é algo que o roteiro menciona em seu início. Em respeito à narrativa (e não ao marketing), este aspecto ficará aqui no âmbito dos spoilers. A propósito, diferente do que se costuma ver no cinema, este filme é adaptado de um áudio drama, de Madhuri Shekar, que também assina o roteiro. No entanto, pouco é feito para realçar o aspecto cinematográfico da história. Enquanto a obra original da Audible (braço de audiobooks da Amazon) é rica por expor os conflitos e desdobramentos através das chamadas intercontinentais entre os personagens, o mesmo atributo é mantido em exagero no longa. A quantidade de ligações telefônicas é tanta que se duvida se alguma cena com as duas protagonistas no mesmo espaço irá acontecer no filme. Pelo menos, a direção dos irmãos Elan e Rajeev Dassani é minimamente sensível para não deixar as conversas tão visualmente monótonas.

A dinâmica de progressão lenta (conhecida como “slow burn“) é imperceptível graças à empatia das personagens, principalmente de Usha. O protagonismo da atriz Sarita Choudhury é excepcional e não por grandes momentos de atuação dramática. Infelizmente ainda é relativamente raro ver mulheres de cinquenta anos serem o centro de histórias, responsabilidade que ela abraça bem e com delicadeza para não deixar que sua Usha caia nos estereótipos da paranoia e do descontrole emocional. Acaba que o melhor arco é o da matriarca, o que faz que o espectador anseie pelo desfecho e saboreie melhor o último ato.

No entanto, o mesmo “slow burn” que pode ser bom para uns, é péssimo para outros, já que o filme “cozinha” o público por mais de uma hora sem que haja nenhum fator complicador relevante novo além do “minha mãe não quer mais que eu case”. Ao longo de um bom roteiro, espera-se que haja um conjunto de obstáculos e superações (ou derrotas), por menores que sejam, que sirvam pelo menos para revelar as características de um personagem ou para desdobrar uma trama. Pior ainda, infelizmente os diretores decidiram não brincar com ambiguidades que permitiriam que o público participasse mais do dilema das protagonistas. A perspectiva do misterioso noivo Sandeep é ignorada e o “será que a mãe tem razão ou ela é maluca?” não acontece propositalmente no filme. Se não fosse pela sutileza da trilha sonora, seria possível dizer que o suspense só chega no final, aspecto que talvez seja ruim para os fãs cativos da casa de terror Blumhouse.

A adaptação do audiobook infelizmente não aproveita os recursos visuais disponíveis para elevar a história original. Como consequência até as passagens de tempo são confusas e não dá para culpar o roteiro. A inserção de flashbacks também não é uma técnica narrativa elegante, mas pelo menos esta é melhor utilizada, com um pouco de estilo na montagem e guardando certo mistério sem que tudo seja revelado de uma vez.

Por trazer consigo um ponto de vista ainda raro nas produções ocidentais e mantendo expectativas baixas quanto à trama, é possível se envolver em “Mau-olhado” e ainda se satisfazer com o desfecho, que até traz uma mensagem feminista e positiva. Porém, qualquer cineasta com raízes no suspense ou no terror teria seguido outras direções na adaptação, para o bem ou para o mal. A obra ainda assim funciona como parte do projeto Welcome to the Blumhouse e pode agradar despretensiosamente o espectador ocasional da Amazon Prime Video.

William Sousa
@williamsousa

Compartilhe