Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Noturno (Prime Video, 2020): os sacrifícios que fazemos pela arte

Carregado pela atuação da carismática Sydney Sweeney, o filme é um divertido exercício sobre os limites que ultrapassamos em nome da arte e do sucesso.

Após anos de incontáveis esforços para aprimorar suas habilidades musicais, a jovem Juliet (Sydney Sweeney) decide que é chegada a esperada hora de alavancar a sua carreira. Cansada de viver à sombra de sua talentosa irmã gêmea, Vivian (Madison Iseman), ela resolve adotar novas abordagens em suas aulas de piano, iniciando atritos com seu professor decadente, Roger (John Rothman), e amplificando a rivalidade com a prestigiada concorrente. Temerosa em perder a chance de uma vida, entretanto, sua sorte muda ao encontrar uma misteriosa partitura que, ao colocá-la em um aparente caminho rumo ao sucesso, começa a cobrar preços terríveis. Continuando a intrigante parceria entre a produtora Blumhouse e a Amazon Prime Video, ao lado de “Mau-Olhado”, é essa a curiosa premissa de “Noturno“, terror psicológico que, apesar de carecer de certa criatividade – sendo notáveis as semelhanças com obras como “Whiplash”“Cisne Negro”, por exemplo -, diverte como um sombrio conto sobre os sacrifícios que muitos fazem pela arte.

Dirigido e roteirizado pela estreante em longas Zu Quirke, sua obra tem como primeiro destaque a construção de envolventes planos-sequência. Eles são embalados pela boa fotografia de Carmen Cabana, eficiente na instauração de um clima inquietante e melancólico através de seus tons cinzentos e saturados, convidando o espectador a passear pelos corredores da academia artística em que os acontecimentos acontecem e produzindo assim uma enervante atmosfera que logo captura a atenção do espectador. Dessa forma, permite que o filme não se renda a jump scares e abuse (com algumas poucas exceções) de imagens grotescas, capaz de se diferenciar de outros produtos do gênero embora ainda sustentado por uma narrativa tradicional. Indo além, é também louvável a ótima administração do ritmo que conduz a produção, bem dividido em passagens – muitas das quais envolvidas por uma ótima trilha sonora composta por trechos de música clássica – que gradativamente amplificam as consequências que atingem a protagonista e jamais se estendem além do necessário.

Apesar de carecer de certa profundidade, outro mérito do projeto se encontra em Juliet, figura que convence através da externalização de suas motivações e invoca aqueles que a acompanham a torcer por suas conquistas em momentos de triunfo e questionar suas ações em segmentos de declínio. Reduzida pelo roteiro ao sonho de se tornar uma grande pianista e à inveja que tem por Vivian – característica que, embora simples, acaba rendendo uma interessante dinâmica entre as duas -, é necessário reconhecer, entretanto, que isso se deve especialmente à ótima performance de Sydney Sweeney. A carismática atriz consegue transparecer a ambição e os efeitos que o sobrenatural exercem sobre ela e se torna assim o maior atrativo do longa. Embora não ganhem espaço para tanto crescimento, coadjuvantes como Madison Iseman e John Rothman também entregam atuações agradáveis, contribuindo assim para o avançar do filme e no realce das mensagens do mesmo ao exemplificar como a glória não substitui as relações humanas.

Mesmo contando com alguns diálogos expositivos e por vezes não se decidindo entre uma abordagem mais sutil ou espalhafatosa – aspecto que peca principalmente nas melodramáticas demonstrações dos poderes da assustadora partitura -, é igualmente justo mencionar, por fim, o interessante discurso construído através do ascender da pianista aspirante. Ele é bem-executado por reconhecer a sua simplicidade e não tentar ir além de suas próprias capacidades (em oposição à protagonista). Mostrando em Juliet uma artista disposta a abdicar, em uma crescente espiral de corrompimento moral, traços de decência e humanidade, tem-se assim uma interessante jornada sobre a subjetividade das satisfações trazidas pelo sucesso artístico. Este ensinamento culmina em um final catártico que, apesar de longe de ser inédito, coroa perfeitamente o caminho trilhado até ali.

Simples e bastante dinâmico, “Noturno” é um divertido conto de terror com uma interessante mensagem acerca dos preços do refinamento artístico. Conduzido por uma ótima atuação de Sydney Sweeney, o filme reconhece as suas limitações e consegue conduzir uma interessante jornada dentro de sua proposta, ascendendo assim, possivelmente, como um dos melhores exemplares da coleção Welcome to the Blumhouse. Embora careça de originalidade, a produção funciona como um bom passatempo para os fãs de um terror mais casual.

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Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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