Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 11 de outubro de 2020

Mentira Incondicional (Prime Video, 2020): elogios seriam a verdadeira mentira

Inaugurando a coleção Welcome to the Blumhouse, o filme sabota uma interessante premissa por meio de uma caótica execução e péssimas atuações.

Um dos aspectos mais interessantes da grande produtora Blumhouse é a não discriminação da mesma na escolha de seus projetos. Mesmo responsável pela reinvenção de inesquecíveis franquias do terror como “Halloween” e ligada a vencedores do Oscar do escopo de Spike Lee e Jordan Peele – responsável pela produção dos marcantes “Infiltrado na Klan” e “Corra!”, por exemplo -, a cria de Jason Blum jamais deixou de oferecer espaço a cineastas iniciantes ou pouco conhecidos, especializada no garimpo de ideias minimalistas mas ainda repletas de criatividade. É uma infelicidade reconhecer, entretanto, que tal seleção nem sempre é bem sucedida, fenômeno perfeitamente exemplificado por “Mentira Incondicional“, filme que, junto a “Caixa Preta”, inaugura o selo Welcome to the Blumhouse, parceria especial do Mês das Bruxas firmada entre a empresa e o Amazon Prime Video.

Afetada pela separação dos pais Jay (Peter Saarsgad) e Rebecca (Mireille Enos), a jovem Kayla (Joey King) tenta suportar uma rotina de idas e vindas entre casas diferentes e as variadas pressões da adolescência. Oscilando entre momentos de melancolia profunda e picos de contagiante espontaneidade, ela começa a apresentar comportamentos estranhos e a preocupar os divorciados, dividindo-os entre as sequelas provocadas pelo fim de um romance e o amor nutrido pela filha querida. Quando a garota é tida como a principal suspeita do assassinato de sua colega Britney (Devery Jacobs), entretanto, a dupla se vê forçada a fazer o possível para evitar que as consequências recaiam sobre ela. Dirigida e roteirizada por Veena Sud – profissional que tem nesse o seu segundo longa-metragem -, a produção traz assim uma interessante premissa sobre erros e a influência do amor sobre os mesmos, mas acaba sabotada por sua própria execução.

Completamente incapaz de cativar o público, o primeiro aspecto diminuidor da obra se encontra na generalizada falta de personalidade de suas personagens. Partindo de uma genérica montagem que visa apresentar brevemente o passado do trio de protagonistas, a obra não demora em se esquivar do aprofundamento dessas mesmas figuras centrais, inserindo o espectador diretamente nos acontecimentos centrais da narrativa e jamais se adentrando nos desejos internos que as conduzem. Com seus dramas pessoais e estados psicológicos reduzidos a marcas físicas – simplistas no tratamento de temas importantes como depressão e autoflagelo – e a uma cansativa alternância entre momentos de leveza e surtos de desespero – aspecto que acaba infantilizando a atuação da injustiçada Joey King -, Kayla, por exemplo, não consegue transcender traços de caricatura, jamais invocando o espectador a se engajar na dúvida em relação a sua culpa e de fato embarcar na trama do filme. Do outro lado, o casal formado por Jay e Rebecca também não ultrapassa meras impressões de perfis humanos, afundado por duas desinteressadas atuações – com ambos Saarsgad e Enos pendendo a um covarde melodrama – e atrapalhando o que poderia ascender como um interessante comentário sobre relacionamentos amorosos.

Não suficiente, o filme também desaponta por abusar de diálogos expositivos – confiando aos mesmos a pífia contextualização do passado e das motivações daqueles em cena e os pavorosos comentários através dos quais tenta alavancar a sua inteligência – e da suspensão de descrença por parte da plateia, sustentando sua linha central em coincidências narrativas que acabam denunciando a existência de diversos furos de roteiro. Seria injusto ignorar, todavia, que por trás da fragilidade desse último ainda existe um curioso exercício do gênero do suspense, sendo notável o objetivo do mesmo em explorar os extremos da capacidade humana de ignorar os defeitos daqueles que amamos. Dono de um péssimo desenrolar, entretanto, nem mesmo coeso acaba sendo o discurso do filme, surtindo o efeito oposto ao tentar condensar com extrema superficialidade mais críticas do que é capaz de administrar – caso da tentativa de falar sobre o preconceito na figura de Sam (Cas Anvar), personagem paquistanês que não recebe o desenvolvimento merecido.

Sustentado por uma base extremamente frágil, “Mentira Incondicional” até propõe reflexões interessantes, mas acaba fracassando em todos os aspectos. Conduzido por fraquíssimas atuações e repleto de furos de roteiro, o filme é uma prova de que boas intenções não são o suficiente, desperdiçando uma série de importantes apontamentos acerca das relações humanas.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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