Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 18 de setembro de 2020

#Alive (Netflix, 2020): efeitos da quarentena zumbi

Produção sul-coreana sobre resistência zumbi é desconcertante por se assemelhar à realidade dos isolamentos de 2020, causados pela pandemia de coronavírus, e por trazer reflexões impostas pelas dificuldades de se relacionar.

Mortos-vivos já foram tema de centenas de filmes, que nem sempre são exclusivamente de terror. Há geralmente um hibridismo de gênero, misturando o horror corporal com comédia, romance, drama, ação ou ficção científica. Dessa forma, a pergunta por trás dos zumbis de cada uma dessas obras é: “o que eles significam?”. Às vezes representam sombras de guerra e o medo do desconhecido ou do colapso social. Outras vezes sugerem críticas à cultura do consumo ou a falhas morais humanas. Em outras palavras, inserir esses seres em uma história é sempre um convite para não interpretá-la superficialmente. E como não podia deixar de ser diferente, é assim com “#Alive”, produção sul-coreana distribuída mundo afora pela Netflix.

Dirigida pelo estreante Il Cho, a obra se passa durante o início de uma pandemia zumbi, mas sob a perspectiva de um jovem gamer, Oh Joon-woo (Ah-In Yoo). O personagem se vê preso em seu apartamento de um grande conjunto habitacional de classe média, enquanto assiste pelas janelas ao caos se instalar no mundo. Apesar da resiliência em lidar com a tragédia, logo Joon-woo precisa contornar a escassez de comida, água, luz e de ânimo para viver nessas condições. Embora o perigo que domina o exterior do apartamento seja retratado com muita ação e gore, o interesse do diretor está nos conflitos internos de Oh Joon-woo.

Há três atos bem marcados na narrativa, porém, para não estragar as viradas para os espectadores, basta dizer que o filme avalia a importância que damos às conexões humanas, para o bem ou para o mal. De qualquer forma, ciente que o projeto foi produzido antes da pandemia de Covid-19, é incrível como é fácil de se identificar com o drama do protagonista. Joon-woo sofre as consequências de uma quarentena forçada, pagando o preço da solidão a longo prazo. Não à toa, o título é um apelo para a sua sobrevivência (“#Vivo”, em português) num mundo conectado digitalmente. Muitos passaram pelos mesmos sentimentos de luto e desalento, simplesmente trocando a ameaça zumbi pelo coronavírus.

Acaba-se então dando um significado novo, não-intencional, e agora universal, ao coração desta obra. O estudo das emoções de Joon-woo e outros personagens também é sobre como nos sentimos durante os isolamentos e distanciamentos sociais em 2020, e possivelmente sobre como nossas relações foram modificadas pela tecnologia. Não é por nada que o protagonista é gamer, vê o exterior através da câmera de um drone e pede roboticamente por curtidas e seguidores. Esta camada extra de interpretação é inevitável, uma vez que a proposta é interior e não favorece a ação, apesar de existir também. Logo, um público que busque um simples filme de sobrevivência zumbi talvez se decepcione, pois este não é seu foco principal, como é em “Invasão Zumbi (Train to Busan)” por exemplo.

A escalação de Ah-In Yoo para liderar a obra também foi vital para alcançar o grande espectro de sentimentos trabalhados ao longo da narrativa. O jovem ator já havia demonstrado um incrível alcance emocional estrelando o longa “Em Chamas”, de 2018, e aqui possui liberdade para viver outro personagem mais complexo do que parece no papel. A sensibilidade de Yoo é assim o principal fator de sucesso desta produção.

Provando que os zumbis ainda não se esgotaram como pano de fundo para trabalhar novos assuntos no cinema, “#Alive” traz um pouco de ação, um pouco de gore e muita reflexão existencial sobre as consequências a longo prazo do distanciamento. Seja ele causado por pandemias, seja pelas comodidades e vícios das novas formas de comunicação. Vale pela oportunidade de pensar sobre a importância das relações e sua função como parte integral da humanidade – tudo isso enquanto se evita ataques de mortos-vivos e explodem cabeças pelo ar.

William Sousa
@williamsousa

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