Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 12 de setembro de 2020

Narciso em Férias (2020): na cela de uma cadeia

Documentário minimalista exibe um relato inédito de Caetano Veloso no cinema sobre os dias em que ficou preso pelo Regime Militar.

“Narciso em Férias” é um documentário-relato de Caetano Veloso para Renato Terra e Ricardo Calil, uma conversa franca de uma hora e meia de duração sobre os cinquenta e quatro dias em que o cantor ficou preso pelo Exército brasileiro durante o regime militar. Com vinte e seis anos à época, ele foi detido pela manhã junto com seu parceiro Gilberto Gil, quinze dias depois do decreto do Ato Institucional n. 5, no dia 27 de dezembro de 1968. O longa estreou no 77° Festival de Veneza na Itália, evento que marcou a retomada dos festivais de cinema desde o começo da pandemia, e já está disponível no Brasil pela GloboPlay.

Esse testemunho do artista sobre sua prisão política é inédito, já que ele raramente aborda o assunto em entrevistas ou mesmo em músicas. Preso em São Paulo, onde morava com sua primeira esposa Dedé, foi levado de camburão ao Rio de Janeiro e durante as dezenas de dias em que esteve sob poder do militares foi transferido por diferentes instalações da cidade. Nenhuma das celas tinha espelhos, daí o título do filme, sobre a perda identitária naquela experiência extrema. Tal despersonalização só seria reparada por uma reprimenda do pai ao encontrá-lo de volta na casa da família, na Bahia. As impressões de cada cela, o medo do destino incerto, as interações com o oficialato militar e a vivência subjetiva do artista com o cárcere brotam de suas falas em primeira pessoa, exibido sem nenhum truque gráfico ou narrativo. A exceção está no final quando ele interpreta duas canções marcantes daquele período, enquanto vemos fotos, autos e outros documentos de sua detenção.

O filme começa com uma música de Orlando Silva, marcante para sua prisão. A partir daí, Caetano começa a falar sem que nenhuma introdução seja necessária para apresentar às audiências nacionais e estrangeiras esse que é um dos mais celebrados artistas brasileiros. A novidade está em ouvir de quem viveu a experiência de ter sido preso pelo Estado e considerado subversivo pela sua profissão. Certamente o timing do projeto foi muito bem programado, fazendo-o ganhar ainda mais relevância em um período em que a relação do governo com a classe artística não é exatamente de respeito e admiração. Assim, a decisão de se expor nessa conjuntura mostra como ele ainda é relevante para a arte e cultura brasileiras, mesmo depois de tantas décadas de criação.

Detalhes como a textura do tecido da coberta da cela, o diálogo com o vizinho de cárcere, as misteriosas coincidências dessa experiência surreal, o encontro com colegas também presos e o julgamento dos militares compõem a narrativa cronológica contada pelo artista. A partir de uma estrutura claramente organizada pelos diretores, o cantor fica confortável para retornar a relatos tão traumáticos. Na parte final, também lê os autos de seu processo, vez ou outra parando para rir com a descrição.

Vale lembrar que Renato Terra traz no currículo o excelente documentário ”Uma Noite em 67 ”, sobre os festivais de música da Record, além de outros trabalhos no tema da história da música brasileira; já Calil assinou recentemente ”Em Nome de Deus”, outro corajoso documentário sobre um esquema de abuso de mulheres pelo médium João de Deus, no seu centro em Abadiânia, no estado de Goiâs. Aqui, os experientes documentaristas deixaram de lado a maioria dos recursos visuais e narrativos do gênero e retornaram ao mais básico estilo do talking head‘ (cabeça falante). Assim, a conversa foi gravada no elefante de concreto da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, que garantiu uma estética de ruínas à história. Ou até uma referência às ruínas do Brasil? Declínio de um país que volta e meia é capturado pelo autoritarismo? Fica para a audiência as interpretações.

A única ressalva é para o trabalho de câmera, que teve Fernando Young, de ”O Incrível Hulk” e ”Chacrinha: O Velho Guerreiro”, como diretor de fotografia. Mesmo com um cenário mínimo, as cenas por vezes perdem o foco, inclusive em alguns momentos cruciais do relato. Se o efeito foi intencional, não funcionou, mas o pior é que não parece ter sido. No geral, o projeto acerta em cheio em ser o mais minimalista possível, compreendendo a importância do que tinha diante de si para a câmera não precisar enquadrar muito, apenas o sentar, o ver e ouvir. Mais do que um documentário, “Narciso em Férias” nasce como um registro histórico à memória nacional.

Vinícius Volcof
@volcof

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