Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de agosto de 2020

A Prima Sofia (Netflix, 2019): sensualidade é só o começo

Disponível no Brasil pela Netflix, coming of age francês usa a sensualidade como tema de fachada para contar uma história muito mais íntima e sensível.

A Prima Sofia” é um drama de maturidade francês dirigido por Rebecca Zlotowski (“Além da Ilusão“) e distribuído no Brasil com exclusividade pela Netflix. Totalmente gravado na região de Cannes, o filme relata um verão de Naïma (Mina Farid), que, após completar 16 anos, precisa refletir sobre seu futuro profissional. No entanto, a distração surge com a visita da distante prima Sofia (Zahia Dehar). Mais velha e independente, a sedutora mulher logo se torna um modelo para a garota se espelhar.

Apesar de o título apontar para a segunda personagem, a principal é inequivocamente Naïma. A ambientação no verão da Côte d’Azur e a premissa a partir do aniversário deixam inquestionável o subgênero coming of age a partir das primeiras cenas. Bastante estabelecido a ponto de criar seus próprios clichês, o trato que esse tipo de produção faz com o espectador é simples e direto: vamos acompanhar a protagonista por experiências formativas de vida e personalidade e ao final veremos que nova pessoa ela se tornará.

Sofia é a agente da mudança de Naïma. Não só supostamente mais bonita e com corpo atraente, a recém-chegada age com confiança como se soubesse caminhar pelo mundo facilmente e da sua própria maneira. Algo belo no roteiro começa aqui, pois o distanciamento emotivo de Sofia está justificado nas entrelinhas. É sugerido no texto que a recente morte de sua mãe e a não planejada visita a Cannes podem explicar suas atitudes, que beiram a inconsequência, mas o blasé na sua forma de agir e seu aparente sucesso são o perfeito disfarce. A outra jovem, por sua vez, ainda não tem a inteligência emocional para perceber isso, assim a prima se torna um exemplo de mulher a seguir e a perfeita companhia para aquela estação.

Também como esperado nesse subgênero, a protagonista começa a absorver traços de Sofia, tanto nas atitudes quanto no figurino. No entanto, há algo firme na personagem que a impede de imitar perfeitamente a prima. São esses valores implícitos em suas atitudes que fazem o público manter a identificação e a confiança na protagonista. Mesmo quando ela age contra sua antiga personalidade, magoando seu melhor amigo e surpreendendo as pessoas que a conheciam antes, o espectador já aguarda esses tipos de conflitos, pois são os fatos que aceleram seu aprendizado.

É interessante notar a cultura francesa nesses detalhes de comportamento, pois diferem de como jovens de outros países agiriam pela sua liberdade. Tais qualidades até específicas do litoral mediterrâneo e norte da Itália fazem parte da estética da narrativa. A diretora utiliza algumas transições com truque de lente e planos com zoom da câmera característicos do cinema francês dos anos 1960. E tal período igualmente traz outras inspirações visuais, não só no figurino e na atmosfera como também na aura de atrizes como Brigitte Bardot e Sophia Loren, presente na caracterização de Sofia. Essas referências ajudam a compor o estado psicológico da personagem, talvez presa na nostalgia e resistente a provar um estilo de vida (não à toa ela tem esse nome). Inclusive, essa região europeia também foi palco de outro recente coming of age de sucesso, “Me Chame Pelo Seu Nome“.

Há mais dois importantes personagens para a história, o brasileiro rico e despreocupado Andres (Nuno Lopes) e seu sócio Philippe (Benoît Magimel). Eles representam o contraponto social à vida simples de Naïma. Apesar de viver em Cannes, conhecido destino da alta sociedade e de seus grandes iates como o de Andres, as ambições da adolescente são diferentes de Sofia, que logo se atira aos braços de Andres e carrega a prima para este mundo de ostentação. Os sujeitos são muito mais velhos que as jovens, entretanto, aqui está outro belo ponto do roteiro. Diferente do clichê do homem predador sexual, o texto os trata como pessoas sensíveis e complexas. Eles não são indiferentes à presença e às vontades das meninas. De certa maneira, seus rumos também são impactados por elas, especialmente o de Philippe, que não é tratado como um simples coadjuvante por Rebecca Zlotowski. A cineasta consegue assim driblar qualquer sensação de perigo que poderia surgir dada a vulnerabilidade de Naïma, e aproveita para construir novos arcos de personagens tão interessantes quanto o da protagonista.

Nota-se que o poder da narrativa está mais na mão da diretora que no texto quando sua lente prefere acompanhar as reações dos personagens ao redor. O jogo de câmera funciona e o que se fala importa menos que para onde a câmera aponta. Se o espectador está atento às atuações e às escolhas de enquadramento, muitas informações que aparecem eventualmente nos diálogos (ou até na abominada narração em off) são desnecessárias. Entretanto, por mais que empobreça um pouco a obra, essa leve redundância permite uma chance extra para que um público distraído possa acompanhar as transformações dos personagens sem se perder nas nuances da história.

De maneira superficial, a sinopse e a ação de “A Prima Sofia” parecem muito simples: duas jovens se encontram, aproveitam o verão entre praias, baladas, jantares e pessoas novas, e depois seguem suas vidas antigas quando a estação termina. Porém, a diretora é sensível para retratar cinematograficamente o turbilhão de emoções que acontece no íntimo dos personagens sem levar para o melodrama, mantendo o clima nostálgico e quente da Costa Azul francesa. De certa forma, esta ótima história de amadurecimento está para Cannes assim como “Encontros e Desencontros” está para Tóquio e “À Deriva” está para Búzios.

William Sousa
@williamsousa

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