Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 05 de setembro de 2020

365 Dias (Netflix, 2020): sexo ruim e careta em forma de filme

Nada se salva no grande hit erótico polonês da Netflix: desde as atuações questionáveis, passando pela montagem confusa, trilha sonora mal executada até a trama pseudotransgressora que só expõe como o sexo ainda é retratado de forma conservadora.

O cinema ainda tem dificuldade de lidar com questões sobre sexo, como o que separa a pornografia do erotismo e se há diferença entre o pornô e um “filme de verdade”. Seria o pornô essencialmente o escracho, a vulgaridade? Mas, uma obra feita para passar em circuito tradicional também pode ser escrachada e vulgar. A diferença é a hipocrisia com que se trata do assunto, a ponto de histórias sexuais contadas em filmes não considerados “pornôs” ficarem cheias de pudores e momentos quase carolas. Por outro lado, criou-se uma falsa imagem de transgressão quando a trama envolve um sexo animalesco, primal. “Cinquenta Tons de Cinza” é um ótimo exemplo: usava a roupagem do sadomasoquismo para parecer diferente, mas era de uma índole conservadora quase cômica. E agora o longa de 2015 encontrou um adversário à altura: “365 Dias”, produção polonesa distribuída pela Netflix dirigida por Barbara Białowąs e Tomasz Mandes.

Assim como a trilogia “Cinquenta Tons”, este projeto também é baseado em uma série de livros (da autora Blanka Lipinska) que conta com uma protagonista feminina que cai nas mãos do chefão galã com ar de bad boy. A diretora de vendas Laura (Anna Maria Sieklucka) vai viajar com seu namorado egocêntrico e sua melhor amiga para a Sicília para comemorar seu aniversário de vinte e nove anos. Entretanto, além de se frustrar com seu grande momento, Laura é sequestrada por Massimo (Michele Morrone), chefe de uma família italiana de mafiosos, que a obriga a passar trezentos e sessenta e cinco dias com ele até que se apaixone por seu sequestrador. Caso contrário, ele a libertará quando o prazo acabar. Porém, como a publicidade do longa entrega logo de cara, os dois entram em um jogo de poder sexual.

Há de se ter um certo cuidado ao lidar com determinados fetiches. Por exemplo, Paul Verhoeven soube lidar muito bem com um tema tão delicado quanto estupro e o que acontece quando ele beira a fantasia sexual em “Elle”; “No Império dos Sentidos” quebrou barreiras e convenções do cinema especialmente com seu clímax (literalmente); e o longa finlandês “Dogs Don’t Wear Pants”  acerta em cheio a medida entre humor e seriedade ao retratar o mundo do BDSM (acrônimo para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) sem o olhar viciado de quem nunca se dispôs a bater ou apanhar em um contexto erótico e consensual. Agora, a produção polonesa consegue perder a linha em tudo que se propõe a fazer, desde sua trama até sua montagem.

Dentro da subcultura do BDSM, pessoas que não praticam fetiches que se encaixam nesta denominação são chamadas de “baunilhas”, aqueles que curtem o sexo mais básico e sem elementos de dor, restrição de movimentos ou hierarquias. E não há nada mais baunilha e careta que o sexo pseudoanimalesco e o jogo de poder entre Massimo e Laura: ela acreditando que pode driblar seu sequestrador bancando a femme fatale provocante e ele resolvendo tudo na base da força e da violência – aqui, obviamente não acontece de forma consensual. O cerne do sexo conservador está justamente na manutenção deste status quo no qual o homem age de forma primal e é quem manda e tem suas vontades satisfeitas, enquanto a mulher apenas se dobra diante de sua vontade e poder, é reprimida quando tenta escapar das regras ditadas por ele e que, por fim, se convence de que ela igualmente quer aquilo que ele deseja.

E a crise não só é temática como também estética: não existe nada de transgressor em cenas de sexo filmadas em quartos com luzes de motel barato e jatos particulares. Sem contar a cafonice crônica que permeia o que seria a casa de um estereotipado mafioso da Sicília: muito ouro, quadros e mais quadros com imagens megalomaníacas do dono da propriedade, pequenos castelos em ilhas desertas onde ocorrem reuniões secretas, jardins sem fim e corredores que parecem labirintos.

Tudo isso leva a questionar outras decisões tomadas: nenhum de seus personagens usa a lógica para agir, o que fica ainda mais exacerbado com as atuações por vezes amadoras dos protagonistas e dos capangas de Massimo. Os cortes entre as tomadas, confusos e mal executados, dão a impressão de que não havia alguém competente disponível para finalizar a edição de forma aceitável; e a trilha sonora entra em ação em momentos tão inoportunos e repentinos que é difícil não perder a concentração em um filme que já é desnecessariamente longo para ter um conteúdo tão raso, sem inspiração e que, por vezes, demonstra odiar seus próprios personagens.

Na tentativa desesperada de ser uma produção não exatamente pornográfica, porém sexualmente explícita, de temática ousada e com um orçamento maior do que um pornô tradicional, “365 Dias” só conseguiu mostrar o que há de mais cansado e frígido das dinâmicas sexuais entre homens e mulheres. Além também de expor as características mais amadoras e medíocres do que consideramos como “fazer cinema”. Quase como se fosse possível transformar o conceito de “transa ruim” em filme.

Jacqueline Elise
@jacquelinelise

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