Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 20 de maio de 2020

O Declínio (Netflix, 2020): prepare-se para o pior

Filme canadense retrata um grupo que se prepara para sobreviver frente a um iminente caos da civilização, mas uma tragédia os leva uns contra os outros e expõe que o declínio pode estar dentro deles.

Em “O Declínio“, David (Marc Beaupré) é um pai de família precavido que tenta garantir sua segurança e a dos seus para o caso de um colapso civilizacional seguindo as dicas de sobrevivência que o guru Alain (Réal Bossé) transmite em vídeos pela internet. Convidado por Alain para participar de um treinamento de sobrevivência em sua propriedade isolada nas montanhas canadenses, David despede-se da família e se junta a outros como ele para o que espera ser alguns dias de “intensivão para o Apocalipse”. Inicialmente similares na preocupação pela sobrevivência frente a uma crise sistêmica que eles vêem como iminente, um incidente trágico rapidamente coloca os participantes dessa espécie de “reality” de sobrevivência uns contra os outros e transforma o cenário em um labirinto congelante para quem tente escapar.

O filme é uma produção canadense da Netflix. A direção é de Patrice Laliberté, com roteiro em conjunto entre o diretor, Charles Dionee e Nicolas Krief. A fotografia fica a cargo de Christophe Daipé, que teve que elaborar complexas ambientações para as cenas noturnas nas congelantes florestas de Québec. O maior problema do longa é perder-se enquanto suspense ao longo da história para se tornar, na metade final, um mero filme de ação.  Ainda assim, sua mensagem subtextual é muito sensível para pensar nas crises do tempo presente.

Embora sem muita repercussão, esse thriller teve um timing de lançamento preciso diante da conjuntura de incertezas que vivida por conta da pandemia do coronavírus, trazendo personagens que exemplificam a ânsia humana de se proteger a qualquer custo frente a crises ou ameaças. Como antagonista, Alain é o típico homem moderno que busca garantir o seu a todo custo: “Quando as coisas ruirem, eu não quero mudar em nada o meu modo de vida”, ele confessa a David. Assim, Alain constrói toda uma estrutura paramilitar que lhe garanta a sensação de controle e segurança, ainda que tudo o que ele esteja fazendo seja altamente ilegal e perigoso.

O que essa história apresenta, porém, é que por mais precavidos que possam ser, as surpresas aparecem pelo caminho e é nelas que se manifestam o valor das pessoas. Um dos pontos fortes da narrativa é ter foco em ressaltar essa premissa sem se apegar exageradamente às personagens. Dessa forma, somos apresentados inicialmente a David em seu ambiente familiar padrão, de uma família nuclear de classe média. No entanto, uma vez que esse aparente protagonista chega à propriedade de Alain e é por ele guiado, com os olhos vendados, até a casa onde conhecerá os outros participantes, o protagonismo da história se dilui entre a personalidade forte e rigidez de Alain (em ótima atuação de Bossé, que poderia ter sido melhor explorada) e as outras pessoas do treinamento, com destaque à personagem de Rachel (Marie-Evelyne Lessard).

Desde o título, o filme parece enfatizar que qualquer ascensão ou declínio da experiência humana depende das pessoas, a partir de suas intenções e atitudes. O ocaso civilizacional temido pelos protagonistas só parece mais provável no meio de uma pandemia de saúde como não ocorria há pelo menos cem anos, mas no universo ficcional dessa história ela trata muito mais do declínio interno de pessoas altamente preparadas que se desagregam e desesperam diante da primeira crise, deixando aflorar o pior de si. Rapidamente abandonando valores de justiça, empatia ou solidariedade, a decadência que o filme mostra é portanto dos valores, como a moral, espelhando o mundo real contemporâneo do individualismo que faz com que cada um se preocupe apenas com o seu.

Não à toa, os personagens redimidos aqui são apenas os que ainda manifestam algum resquício de empatia pelo próximo. Embora mais dessa dimensão humana seja secundarizada da metade para o final da obra, quando “O Declínio se transforma num puro filme de perseguição, pode-se dizer que essa história trata dos valores humanos. Vemos a ruína daquele microcosmo montado por Alain entre vales e montanhas do Norte como metáfora para a queda de valores civilizacionais que nos aflige no mundo moderno e que tem levado a uma piora das coisas. Segundo a sociologia, a sociedade se forma por meio de valores consentidos entre as partes: assim nos subordinamos a leis e governos. Uma vez que se perde a sensação de pertencer a um todo, ainda que formado por grupos diversos e discordantes de si, o que as sociedades experimentam é a experiência de anomia, estado de dissensão social que inevitavelmente põe uns contra os outros, e assim volta-se à máxima de Thomas Hobbes de que “o homem é o lobo do homem”.

Diz-se que a sociedade moderna é criada para que o homem não seja o lobo do homem, porém, se quando a existência do outro se torna ameaça, só resta caçá-lo. Porém, sentir-se ameaçado pelo outro ser, pelo diferente, é uma escolha. Não é imperativo que a existência de um outro diferente em hábitos e opiniões ameace outra forma de vida. Pelo contrário, a diversidade tem se mostrado o maior combustível de evolução de nossa espécie. Não há porquê ou como culpar a sociedade pela eventual derrocada, pois ela é formada pelas atitudes de cada um, desde atitudes e valores íntimos, entre amigos e familiares, até aqueles que são partilhados publicamente ou no modo como se age em sociedade. Jean-Paul Sartre ensinou e esse filme reforça: “o inferno somos nós”.

Vinícius Volcof
@volcof

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