Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 08 de março de 2020

Anne with an E (2017-2019): um século à frente

Com uma atriz principal fenomenal e cativante, a série se vale de fatos históricos para discorrer sobre os temas atemporais de igualdade e respeito, entregando uma mescla de drama, crueldade, humor e carinho como poucas vezes visto antes.

A música de abertura de “Anne with an E” se chama “Ahead by a Century”, algo como “um século à frente”, em tradução livre. A frase se encaixa muito bem na protagonista Anne Shirley-Cuthbert (Amybeth McNulty) e na própria série. A história da órfã, adotada por um casal de irmãos que moram numa fazenda em uma pacata cidade canadense, é usada como pano de fundo para debater sobre respeito e preconceito com acertos imensuráveis.

Adaptada da antologia de livros “Anne of Green Gables” da autora Lucy Maud Montgomery, publicada no final do século XIX, a obra conta a trajetória de Anne, uma tagarela pré-adolescente que ama livros, romance e fantasia. Ela cresceu num orfanato de onde partia para diversos lares que acabavam por mandá-la de volta. Quando é acidentalmente adotada por Matthew e Marilla Cuthbert (R. H. Thomson e Geraldine James, respectivamente), a garota tem suas esperanças de encontrar uma família renovadas. Após desentendimentos iniciais, os laços familiares se formam em definitivo e a presença da jovem começa a transformar todos a seu redor.

A série foi produzida e transmitida pela CBC no Canadá, contando com a Netflix para a distribuição mundial. Tendo Moira Walley-Beckett (produtora e roteirista de “Breaking Bad”) como showrunner, a qualidade sempre se manteve alta. Com raras barrigas narrativas e poucos momentos desnecessariamente apressados ou expositivos, os episódios trazem um invejável desenvolvimento de personagens, que chegam ao final da terceira e última temporada transformados pelas experiências vividas. Os figurinos e cenários para trazer a fictícia cidade de Avonlea à vida, representando modos de vida e costumes da época, não só enchem os olhos como ilustram a divisão de classes sociais e as influências culturais dos moradores.

Entretanto, os destaques não ficam apenas nas qualidades técnicas. Anne, já tendo ideais de igualdade e afeição, se depara com uma sociedade machista, racista e xenofóbica. Problemas, infelizmente, que fazem parte da humanidade mais de cem anos depois. Essa é a maneira certeira de o programa discutir direitos iguais, usando provas cabais de relatos históricos para ilustrar o absurdo de qualquer regime social que rebaixe uma pessoa por elementos que não dizem nada sobre seu caráter. A protagonista tem a “audácia” de tratar todos com o mesmo nível de decoro e respeito e, veja só, é repreendida por isso.

Conforme ela vai amadurecendo durante as temporadas, começa a encarar tais adversidades, a defender sua opinião e, por meio de sua inteligência, a apontar a hipocrisia do preconceito. Méritos de um texto excepcionalmente bem construído nesses quesitos, sem nunca ficar militante ou expositivo, apenas mostrando indivíduos sofrendo discriminações e ilustrando as feridas emocionais e sociais advindas de comportamentos arcaicos e ultrapassados. Um bom exemplo de como fatos históricos podem ser usados para validar seu discurso é a introdução índios na terceira temporada. A personagem principal faz amizade com a jovem Ka’kwet (Kiawentiio Tarbell) e fica horrorizada (sentimento facilmente partilhado pelo público) quando o governo a arranca de sua tribo para que frequente uma “escola” cristã, na verdade uma prisão que tortura as crianças para, essencialmente, fazer lavagem cerebral e, com isso, apagar a cultura indígena da região. É chocante e cruel, fazndo pensar sobre a imensa falta de consideração em relação a povos de origens diferentes. É uma pena que essa trama não tenha sido concluída devido ao encerramento abrupto da produção – fato que se configura como um dos poucos problemas da série.

Ao mesmo tempo que discorre sobre grandes falhas da humanidade, a narrativa também dá esperança para nossa capacidade de evoluir. A garota, aos poucos, conquista e influencia várias pessoas a seu redor. Marilla, por exemplo, tinha imensa dificuldade de expressar carinho e, conforme os anos com sua filha adotiva passam, aprende a aceitar seus sentimentos de tal maneira que acaba dando conselhos a outros, numa bela mensagem de como boas influências podem ser contagiantes. Inspiração semelhante acontece com as amigas e colegas de classe que se sentem bem consigo mesmas e ousam querer coisas melhores para suas próprias vidas. Aliás, a energia trazida à tela pela atriz principal do elenco é algo verdadeiramente especial: a constante tagarelice da personagem nunca fica irritante porque ela faz cada momento ser genuíno e tocante; seu coração do tamanho do mundo oferece espaço a todos; e sua habilidade de atingir almas endurecidas amolece adultos rígidos que passam a ter pensamentos progressistas. A interpretação traz tanta veracidade e uma aura tão positiva que acaba chegando aos corações dos espectadores e ajuda a vendar o roteiro.

Não se pode encerrar um texto sobre essa série sem mencionar Gilbert Blythe (Lucas Jade Zumann). O personagem é quase um espelho da protagonista e igualmente tem um final satisfatório. Se Blythe é menos sonhador, definitivamente tem a cabeça pensando no futuro. Sua relação com Bash (Dalmar Abuzeid) ilustra alguém que não se prende às amarras sociais da época, mas que consegue escapar de críticas por ser um homem branco, o que não acontece com seu amigo negro alvo de julgamentos. Bash, aliás, tem um arco narrativo bastante significativo na última temporada, escancarando o talento e o carisma de Dalmar Abuzeid.

Com uma atriz principal brilhante e cheia de energia, personagens carismáticos e reais, além do bom uso de fatos históricos para debater questões atemporais, a série trata seu público jovem com respeito e entrega um material rico ao convidá-los para examinar seus comportamentos e buscar suas próprias vozes. “Anne with an E” disse muito em pouco tempo, mas ainda tinha muito a dizer. Mesmo com seu prematuro encerramento, há potencial de sobra para inspirar pessoas, especialmente meninas, a se sentirem bem consigo mesmas e a buscarem sua própria independência.

Bruno Passos
@passosnerds

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