Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 02 de outubro de 2019

Alô, Privilégio? É a Chelsea (Netflix, 2019): expondo injustiças

Partindo de seu próprio universo e avançando para a sociedade em geral, a comediante Chelsea Handler investiga como o privilégio branco ajuda a sustentar o racismo estrutural e as injustiças sociais.

Crescer na carreira, participar das decisões políticas, lidar com a polícia e com a justiça, buscar oportunidades variadas na vida. Esses desafios preenchem a trajetória de qualquer pessoa, colocando barreiras, dúvidas e riscos para a superação de adversidades e a conquista de vitórias. Quando a cor da pele entra como variável impeditiva para um percurso por si só complexo, a situação social atingiu níveis de injustiça e discriminação que envolve diversas questões problemáticas. O documentário “Alô, Privilégio? É a Chelsea“, dirigido por Alex Stapleton, também responsável por “Outside In: The Story of Art in the Streets“, trata do problema, acompanhando a percepção da comediante Chelsea Handler sobre os impactos do privilégio branco na cultura norte-americana, na própria vida e na sua carreira.

Em sua abertura, a narrativa começa a tratar o tema central a partir das experiências pessoais de Chelsea. A montagem cria uma sucessão de cenas contrastante, onde o público é apresentado às contradições que permeavam parte da vida da atriz: enquanto alguns momentos de seu show de stand-up, exibidos através de imagens de aquivo, mostram um texto falando sobre suas dificuldades financeiras, outras sequências são alternadamente inseridas para revelar sua casa luxuosa. Além de indicar como Chelsea pode ter vivido um longo período sem perceber o paradoxo entre suas apresentações e seu modo de vida, a utilização desse recurso em uma produção audiovisual aponta para a compreensão de um exemplo de privilégio branco.

Chelsea transita por diferentes espaços para questionar autoridades de instituições políticas e sociais, personalidades públicas, artistas como os comediantes Kevin Hart e Tiffany Haddish, ativistas e pessoas comuns e anônimas acerca da existência do privilégio branco e de seus reflexos sobre as pessoas negras. Através das muitas entrevistas realizadas, o filme aborda o racismo estrutural a partir dos obstáculos para votar em eleições diversas, dos tratamentos preconceituosos dados pela justiça, da violência policial e das barreiras para o desenvolvimento educacional e da carreira profissional. Paralelamente a isso, cada uma das manifestações discriminatórias reveladas não encontra correspondência em nada parecido que as pessoas brancas possam ter vivenciado – pelo contrário, benefícios e vantagens indevidas atravessam suas vidas pelo simples fato de não enfrentarem a hostilidade da sociedade diante da cor da pele.

Nos primeiros minutos de projeção, o documentário passa por dificuldades para encontrar a abordagem. Chelsea circula por ambientes em que interage com negros para trabalhar o tema, como por exemplo a conversa com Kevin Hart e Tiffany Haddish sobre os obstáculos enfrentados por eles na carreira artística e com um grupo de estudantes universitários sobre as estratégias de enfrentamento do racismo. No entanto, o filme e a atriz apresentam sinais de uma postura de porta vozes de um salvacionismo da mente da população branca e de certa condescendência com os personagens negros presentes – quando Chelsea menciona um caso pessoal e busca a aprovação de um homem negro ao seu lado e quando escuta de um dos estudantes que poder fazer aquele filme seria uma demonstração do privilégio branco.

A perspectiva adotada pelo roteiro se encontra a partir do momento em que as conversas ocorrem com ativistas e anônimos para tratar o racismo historicamente. Novamente imagens de arquivo são empregadas, dessa vez com o objetivo de mostrar os efeitos dos preconceitos raciais na atualidade como desdobramento de séculos de escravidão e da violência da Ku Klux Klan e da segregação racial, principalmente destacando as dificuldades para exercer o direito ao voto por meio das restrições aplicadas à população negra à sua participação política e das manifestações favoráveis ao sufrágio. Durante conversas com um ativista, Chelsea ainda pontua duas questões relacionadas ao privilégio branco e seus impactos: toda regalia pressupõe a opressão de outros grupos e a reprodução de desigualdades socioeconômicas. Apesar dos elementos expressivos colocados na montagem, o documentário em dado momento desperdiça as possibilidades visuais da linguagem para criar outros significados e emoções.

Em compensação, existe outro ponto forte no tratamento ao tema. Chelsea também passa por ambientes onde confronta pessoas brancas sobre a existência ou não do privilégio branco, como a ida ao Oktoberfest e a uma reunião com um grupo de mulheres conservadoras. Essas interações revelam os mais diversos absurdos proferidos por pessoas que viveram regalias sociais, mas negam insistentemente a existência do fenômeno: votar não é um direito, mas sim um privilégio de poucos; pessoas nunca presenciaram privilégios brancos porque até conviveram com negros em suas vidas; todos os grupos possuem algum tipo de privilégio, como as cotas raciais nas universidades; e a incompreensão dos favorecimentos desfrutados pelos brancos em sua biografia. Porém, também revelam uma observação precisa sobre a incapacidade dos brancos de perceberem seu privilégios ou terem dimensão de seus resultados por conta da naturalização dessa condição.

Após trazer elementos sociais amplos, a narrativa volta para uma dimensão pessoal de Chelsea para, como em um ciclo, entrelaçar público e privado. Ao retomar situações em que não foi punida pela polícia somente por ser branca, ela encontra a direção narrativa para evitar o discurso do salvacionismo branco. O exemplo de sua experiência a conduz para a percepção de como os brancos têm sua parcela de contribuição, parte integrante de um quadro maior que não envolve salvadores, no combate ao racismo e ao privilégio branco. Uma luta diária sem precisar de manifestações épicas, pois os ataques cotidianos a práticas preconceituosas expõem nossa realidade injusta e desigual e mobilizam por uma sociedade sem privilegiados.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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