Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

George Harrison: Living in the Material World (2011): o Beatle mais transcendental

Longo sem ser confuso, documentário de Scorsese pinta um fiel retrato do lado espiritual de George Harrison, que buscava expandir sua mente para encontrar respostas para o que mais existia além do mundo material.

10 anos após a segunda morte de um Beatle, Martin Scorsese (“Silêncio“) entrega um longo (três horas e meia) documentário sobre George Harrison, pintando o retrato de um homem que tinha tanta capacidade para a gentileza quanto para agressividade, que se viu mergulhado no mundo da fama extrema ainda muito jovem e se dedicou à música como modo de explorar novas fronteiras da comunicação e da psiquê humana. Contando com produção e participação da viúva Olivia Harrison, “George Harrison: Living in the Material World” faz uma grande homenagem ao membro do quarteto de Liverpool que procurou ter grande contato com a espiritualidade.

O documentário é dividido em duas partes, anunciadas por letreiros na tela. A primeira se dedica ao período da beatlemania, desde o início da banda ainda com Stuart Sutcliffe, até a saída de Harrison. Logo se percebe a vantagem de ter a própria Olivia Harrison como parte do time, pois o longa é repleto de fotos e vídeos inéditos do Beatle, que aparentemente guardava grande material para a posteridade. Há também cartas do próprio Harrison apresentando suas visões sobre muito do que acontecia em sua vida. Scorsese e seu montador de longa data, David Tedeschi, inteligentemente usam esses textos narrados pelo filho Dhani Harrison (que também dá depoimentos), podendo assim encaixar imagens que dialogam diretamente com o que está sendo dito em voice over, enriquecendo o material em poucos frames.

Scorsese, com o peso de seu nome, não teve problemas em conseguir figuras de grande prestígio para prestar depoimentos.  Estão lá Ringo Starr e Paul McCartney, Olivia e Dhani Harrison, Eric Clapton, George Martin e vários outros que trabalharam e/ou conviveram diretamente com Harrison. São figuras que, simplesmente por serem quem são, acabam sendo facilmente mais aceitas pelo público e fazendo os relatos ganharem valor e veracidade ao discorrerem sobre os dois lados do Beatle e sua busca por algo mais significativo além do mundo material em que vivia.

A passagem de tempo é certeira e o longa, por mais comprido que seja, nunca é confuso. Há uma clara preocupação em usar material de arquivo que se passe na mesma época do que está sendo contado. E desde o começo da primeira parte, ou seja, desde o início da fama, a obra procura ilustrar o quanto Harrison logo começou a questionar o que mais poderia haver além de bens materiais. A fama e a constante atenção o cansaram e levaram-no a viajar para a Índia, onde conheceu gurus como Ravi Shankar e Maharishi, que o ensinaram sobre como expandir a mente por meio da meditação e da música, também mostrando que o Beatle teve um papel de líder para guiar os outros membros no mesmo tipo de busca.

Sua sede por paz espiritual e a exaustão de lidar com o ambiente difícil de ter uma banda de enorme sucesso o levaram a sair dos Beatles e iniciar sua carreira solo, e aí começa a segunda parte do documentário, mais focada na sua vida pós-grupo e no seu mergulho no estudo do místico. Scorsese passeia pelos principais álbuns e pelas mais importantes composições de Harrison, intercalando trechos das músicas com relatos do próprio e de outros que conviviam com ele, até de seus gurus. Por vezes, o diretor coloca letras das canções na tela enquanto se escuta um depoimento que reforça a ideia de que Harrison tinha profundo interesse no que mais sua mente poderia alcançar.

Entretanto, se o longa é magnífico em ilustrar o lado espiritual de Harrison, ele se perde um pouco ao bater na tecla de que o Beatle tinha capacidade de grande gentileza, mas também de grande agressão ao não fornecer muito deste último lado. São apenas poucos relatos que parecem propositadamente superficiais, talvez pelo envolvimento de sua viúva no projeto. Um bom exemplo é quando Eric Clapton conta que se apaixonou por Pattie Boyd, esposa de Harrison na época, e a conquistou. Há um breve relato de como o marido ficou com raiva da situação, mas fica a sensação de que o filme queria varrer esse fato logo para debaixo do pano e focar em Harrison superando a perda e continuando amigo de Clapton. Seria brega se os relatos não fossem tão genuínos, o que deixa bem fácil de acreditar que esse lado doce era realmente enorme.

Terminando com um assustador relato de Olivia de quando um estranho invadiu sua casa e esfaqueou Harrison, e o sincero depoimento do filho de que isso tirou anos da vida de seu pai que vinha de uma batalha contra o câncer, “George Harrison: Living in the Material World” fecha um ótimo mergulho na alma de um dos maiores músicos do século XX e pinta um excelente retrato de seu legado, que inspira e continuará inspirando muitos para sempre.

Bruno Passos
@passosnerds

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