Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 26 de janeiro de 2019

Ánimas (Netflix, 2019): a mente como pesadelo

"Ánimas" é um terror psicológico construído em torno de um universo particular, mas também oscilante na organização dos elementos pertencentes ao seu mundo.

A mente de uma pessoa pode se estruturar, temporariamente, dentro de uma dinâmica de pesadelo. Traumas e angústias variados podem levar à criação de regras mentais próprias que reprimem, ocultam, transformam e ressignificam as experiências vividas. O terror psicológico “Ánimas” disponibilizado pela Netflix, explora as armadilhas do subconsciente, construindo para si uma atmosfera incomum e amedrontadora cujos resultados oscilam entre o exagero e a eficiência.

A trama tem início quando a adolescente Álex (Clare Durant, de “I Love Her“) sofre com estranhas visões cada vez mais frequentes e assustadoras, ao mesmo tempo em que ajuda seu amigo Abraham (Iván Pellicer, da série “Fugitiva“) a lidar com a namorada e com o pai violento. A sinopse em si não impede que o espectador sinta rapidamente uma sensação de estranhamento; esse objetivo é proposital ao partir de um ponto mais avançado da história em que os personagens sabem mais do que está acontecendo do que o público. Acompanhar, inicialmente, Álex se ferir de formas diferentes, ajudar Abraham a conversar com a namorada ou simplesmente os dois amigos interagindo não indica os sentidos e os rumos tomados pela narrativa.

O estranhamento sentido se desenvolve para evidenciar que nem tudo que se vê em tela é real, podendo, muitas vezes, ser produto de uma mente nada saudável – algumas leituras psicológicas mobilizando conceitos de Freud e Jung podem ser feitas. Os planos inclinados concebidos pelos diretores Laura Alvea (“Asesinos Inocentes“) e Jose F. Ortuño (“Oleum“) transmitem a desorientação de uma realidade concreta ou um ambiente fantasioso ainda incompreendido; a montagem foge da relação causa e consequência para mover a narrativa, já que os cortes e as passagens de tempo levam os personagens a cenários e situações imprevisíveis; e os fatos não são realistas e indicam o tom imaginativo em uma escala crescente (portas pregadas no chão, vultos indistinguíveis, aparições aterradoras…). Cada um desses elementos contribui para o estabelecimento de uma impressão de pesadelo sobrenatural.

Nem toda construção visual de “Ánimas”, no entanto, é bem-sucedida. A iluminação causa desconforto, e não por atender à proposta narrativa, mas sim por não serem bem utilizadas. As cores são irreais, lavadas e com um aspecto empalidecido e fantasmagórico, como saídas de um pesadelo. Apesar disso, o padrão que se poderia criar (Álex sempre envolta em cores verdes, o pai de Abraham envolto em cores vermelhas) é prejudicado por uma mudança abrupta e repentina na fotografia das cenas que não transita bem entre os diferentes significados que se quer evocar. Além disso, a tonalidade exagerada de cada cor cria planos esteticamente sem beleza à medida que o filme transcorre.

A condução pelo universo proposto também tem irregularidades em função das atuações instáveis. Clare Durant e Iván Pellicer têm uma boa dinâmica para transmitir o estranhamento daquela atmosfera, uma vez que a interação entre eles sempre parece ocultar algo importante. Porém, individualmente, eles têm dificuldade de expressar os conflitos vividos pelos personagens: a atriz está, a todo momento, querendo mostrar tensão ou confusão diante do que ocorre ao seu redor, muita vezes recorrendo a expressões simplistas de dúvida ou apreensão; enquanto o ator é predominantemente inexpressivo, não evidenciado o ambiente problemático que tem em casa com o pai agressivo e a mãe atormentada psicologicamente por essa ameaça – quando demonstra uma expressão mais forte e emocional, ela soa melodramática e exagerada.

Em termos gerais, a própria construção do universo do filme enfrenta percalços. De início, os dois diretores apostam em jump scares para a criação do terror e falham ao utilizar alguns muito bobos, dentre eles a interrupção de um diálogo causada pela aparição repentina de outro personagem no cenário. Há uma evolução, nesse sentido, quando o medo se torna psicológico e o interesse passa a ser o estabelecimento de uma atmosfera imprevisível, de uma áurea de pesadelo em que os piores temores de uma mente conturbada podem emergir e tomar forma. A maneira, portanto, como se relacionam a trama em si e as operações do subconsciente consegue explicar os principais acontecimentos vistos e até então tidos como incoerentes. Só não é possível afirmar que “Ánimas” utiliza todo o arsenal cinematográfico disponível para representar as particularidades da psique humana, algo que ele mesmo se propôs a fazer.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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