Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 12 de janeiro de 2019

Strong Island (Netflix, 2017): pessoal e transferível

Indo de encontro as expectativas, documentário da Netflix impressiona por fugir do enlatado investigativo e se tornar mais incisivo do que qualquer outro.

Um jovem negro é morto nos EUA e ninguém foi preso. Infelizmente essa frase é muito mais comum do que aparenta, e pode ter causado pouca ou nenhuma reação da parte de quem recebe tal informação. Buscando sair do lugar comum, Yance Ford documenta a história de seu irmão William Ford Jr., assassinado aos 24 anos no ano de 1992, depois de uma briga numa oficina. Nenhum culpado, nenhum preso. Yance vai em busca de entender o que aconteceu e nos mostrar quem seu irmão era de fato, e uma história de investigação e senso de justiça é o que se esperava de “Strong Island“.

No entanto, o que vemos é um filme pessoal, que se baseia instintivamente nos relatos mais íntimos e profundos de uma mãe e duas irmãs, que tiveram o mundo virado do avesso depois do ocorrido. Ao focar seus esforços em Marie Ford (a matriarca da família), Yance dá voz a mulher responsável por todo seu caráter e o de seu irmão, além de um longo flashback, necessário para nos apresentar a família, desde que vieram de Nova York para Staten Island.

Conhecemos mais sobre o pai (William Ford Sênior), e toda a trajetória dos Ford, passando pelo sul racista americano e como os pais não queriam que aquilo fosse refletido nos filhos. Os amigos, os policiais e os promotores que estiveram envolvidos diretamente no caso também contam seu ponto de vista, mas por incrível que parece não há qualquer sinal de um thriller investigativo ou até jornalístico. Os depoimentos intercalados com fotos antigas e imagens de simulação, aproximam “Strong Island” de um documentário convencional e até certo momento, nos perguntamos se a diretora, sendo irmã da vítima – pode alterar ou não a narrativa.

Yance é a mais clara e imparcial possível, permitindo que os outros falem sem interrupções, ao mesmo tempo em que a dor que ainda sente é visível. Quando aparece em cena, a própria diretora utiliza um fundo preto na maioria das vezes, ressaltando seus olhos. Ao humanizar a vítima, Yance sai do macro para o micro, e a proposta, sem dúvidas, é nos dizer que aquele é sim só mais um caso no meio de tantos que assolam os EUA e o mundo, mas que nunca foi mostrado dessa forma. É como se ela tirasse o racismo de um grande problema mundial e nos fizesse pensar em como aquilo mudaria o nosso mundo individual.

Outro ponto que ajuda nessa construção mais pessoal é o fato da família Ford fugir dos padrões de famílias negras apresentados na maioria das obras do audiovisual. Enquanto que vários casos de assassinato e abuso policial contra negros são arquivados muitas vezes por falta de verba das vítimas, a família Ford vive muito bem economicamente e longe da miséria apresentada em tantas outras histórias.

Ao ler o diário de William já bem próximo ao fim, a diretora não transforma seu irmão num herói injustiçado, mas deixa essa função para nós. Aliás, boa parte da produção faz esse exercício imaginativo, pois nem sequer vemos o rosto do assassino, a outra testemunha presente, ou até mesmo imagens do irmão morto. Yance não procura chocar, pois ela quer que você conheça William, um jovem cheio de defeitos, mas também com muitos sonhos. Ter “Strong Island” disponível na Netflix é uma forma desse relato chegar em mais pessoas, tornando a obra pessoal e transferível.

Tiago Soares
@rapadura

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