Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Thelma (2017): inteligente, ácido e perspicaz

Sem se encaixar adequadamente em um gênero específico, o diferenciado filme bebe de fontes clássicas do suspense/terror para defender uma causa e/ou criticar um grupo em um texto metafórico.

De uma forma discreta, “Thelma” é um filme muito inteligente, cujo ácido e perspicaz desfecho permite extrair ao menos duas mensagens evidentes – para além, é claro, das subliminares.

O longa é protagonizado por uma jovem norueguesa que se muda para a capital para estudar, afastando-se de seus pais. Porém, sua nova rotina é rapidamente abalada por uma paixão e por seus enigmáticos poderes sobrenaturais.

Já do enredo é possível concluir: é um filme que não se encaixa adequadamente em gênero algum. O diretor (e corroteirista) Joachim Trier (“Mais Forte que Bombas”) é certeiro ao fincar sua obra no fenômeno da miscigenação dos gêneros, não se podendo rotular adequadamente a produção em nenhum deles, já que existem momentos de drama, romance, ficção e horror no longa.

Trier tem uma referência muito clara: “Carrie, a Estranha”, de 1976. Como se sabe, um terror clássico, dirigido por Brian De Palma e baseado na obra de Stephen King. Episodicamente, há outra referência não distante: o suspense de 1963 “Os Pássaros”, dirigido por Alfred Hitchcock. Com efeito, há um clima de mistério, inclusive por não se saber o verdadeiro potencial dos poderes de Thelma. A mise en scène do suspense é bem construída, gerando cenas tensas, em especial no apoteótico clímax.

O roteiro, como não poderia deixar de ser, acompanha essa lógica. O prólogo, por exemplo, só faz sentido a partir da segunda metade da película, quando flashbacks preenchem a trama – do contrário, os primeiros minutos são, isoladamente, belos do ponto de vista estético e espantosos do ponto de vista semântico. Ainda assim, o avanço da narrativa dá pistas sobre o que a sequência reserva: a criação rigidamente religiosa e o monitoramento constante dos pais, em face da vida de Thelma, fazem total sentido naquele contexto.

Aliás, tudo vai ganhando explicações, com uma protagonista que se torna cada vez mais compreensível. O mérito é também da atriz Eili Harboe (“A Onda”), que exibe bem a progressão da personalidade de Thelma. Nesse sentido, os diálogos sobre temáticas religiosas parecem periféricos, inclusive quando a personagem é estimulada a profanar sua própria fé (antes ortodoxa), todavia, é outro elemento do texto com função essencial. Existe até mesmo uma passagem histórica, totalmente conexa com a trama, mencionando a perseguição às “bruxas” no período medieval.

É extremamente difícil fazer uma análise densa de “Thelma” sem incorrer em spoilers. Trata-se de um filme rebuscado que, para ser mais bem abordado, demanda um exame de algumas passagens expositivas da trama. Portanto, fica o alerta que, no próximo parágrafo, poderão haver algumas leves revelações no presente texto.

O pecado está simbolicamente sempre à espreita da protagonista, através da metáfora da cobra, aproximando-se dela em algumas cenas. Afinal, na visão cristã (e Thelma é cristã), a serpente é associada ao pecado. Porém, isso é enxergar o óbvio. A cena em que Thelma tem uma alucinação com a cobra, por outro lado, carece de uma interpretação mais apurada, é uma passagem paradigmática na produção. Do ponto de vista psicanalítico, a metáfora se refere a uma experiência sexual vivida por Thelma, heterossexual – mais precisamente, uma referência ao sexo oral –, que ela, mecanicamente, rejeita. Ou seja, não existe um elemento volitivo, é mais forte que ela. Evidentemente, é apenas uma interpretação, dentre as incontáveis possíveis.

Com um grand finale, “Thelma” é um filme diferenciado, inteligente, que sabe discursar com elegância. Entende que um possível caminho para defender uma causa e/ou criticar um grupo é na sutileza de seu texto, principalmente através de metáforas. É um filme que talvez parcela do público não vai compreender, já que poucos são concebidos dessa forma.

P. S.: deixarei “duas mensagens evidentes” nos comentários, por envolver o desfecho, para a leitura exclusiva de quem tiver interesse.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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