Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 30 de janeiro de 2010

Invictus (2009): Nelson Mandela é apresentado para o cinema comercial

Clint Eastwood filma compulsivamente, mas mantém a qualidade.

Stanley Kubrick, provavelmente o maior dos cineastas norte-americanos, dirigiu apenas 13 filmes em quase meio século dedicado ao cinema. Cada uma dessas obras gerou centenas de ensaios críticos, tratados filosóficos e conversas empolgadas em rodinhas de cinéfilos. Woody Allen, outro nova-iorquino famoso, continua na ativa com sua indefectível marca de um filme lançado a cada ano. Ao contrário de Kubrick, a maioria dos filmes de Allen cai rapidamente no esquecimento, salvo um ou outro que ganha notoriedade de tempos em tempos. Até 2003, o californiano Clint Eastwood era lembrado quase exclusivamente por sua caracterização como o policial Dirty Harry, enquanto a carreira de diretor parecia se limitar à consagração de “Os Imperdoáveis” (1992) no Oscar.

A onda criativa iniciada com “Sobre Meninos e Lobos” comprova que, pelo menos até agora, Eastwood tem conseguido equilibrar a densidade de um Kubrick e a constância de um Allen. “Invictus” chama a atenção de críticos e cinéfilos pouquíssimo tempo depois dos elogiados “Gran Torino” e “A Troca”. Apesar da temática peculiar do filme protagonizado por Morgan Freeman e Matt Damon, é possível detectar aquele que tem sido o objeto recorrente dos filmes de Eastwood: a capacidade de transformação de um indivíduo diante de adversidades externas que provocam a reflexão e a ponderação sobre ideias já arraigadas.

Ambientado na África do Sul pós-apartheid, o filme não tem a pretensão de ser uma cinebiografia do ex-presidente Nelson Mandela (Freeman). E é essa sua maior qualidade. Assim como “A Rainha” (2006), de Stephen Frears, o novo filme de Eastwood parte de um capítulo bastante limitado da vida de uma personalidade pública para desenvolver uma história completa, sem precisar recorrer ao nascimento/auge/morte típico dos longas biográficos. Aqui, o país, marcado pelas tensões raciais entre brancos e negros, acompanha o início do mandato de Mandela. Imagens em ritmo documental contextualizam rapidamente a segregação histórica na África do Sul e a libertação do ativista político que iria chegar à presidência nas eleições de 1994. A partir daí, “Invictus” se concentra na estratégia política defendida por Mandela: aliar os povos de diferentes raças que habitam o país, ao invés de instigar ainda mais o ódio e as barreiras entre eles.

Eastwood é  preciso ao caracterizar o clima de conflito que marcou aquele tempo. Até mesmo uma caminhada matinal do presidente é cercada por uma atmosfera de animosidade. A fotografia árida compactua com a situação, retratando a África do Sul como um país moralmente destruído que enxerga em Mandela uma esperança de reconstrução. Disposto a buscar a reconciliação e desencorajar qualquer tipo de vingança ou revanchismo dos negros em relação aos brancos, o presidente decide trabalhar com uma equipe multirracial e investe no fortalecimento do time de rúgbi, um dos esportes mais populares do país. É assim que ele se aproxima do capitão do time, François Pienaar (Damon), que passa a treinar inspirado na história de superação de Mandela.

A relação entre Mandela e François é o eixo que traz equilíbrio e ritmo ao filme. Pontuada pelos contrastes (um é um experiente político negro, o outro um jovem atleta branco), a admiração mútua entre ambos simboliza um país que quer abrir mão de seu passado para finalmente vislumbrar o futuro. Para construir uma nação que respeita as diferenças, o presidente aposta todas as fichas no rúgbi. Ainda que em alguns momentos Eastwood retrate seu protagonista como um estadista displicente, a convicção de Mandela nos valores do esporte é traduzida em cenas de delicadeza emblemática, como a visita que os jogadores da seleção fazem à periferia de uma das metrópoles sul-africanas. A trilha sonora com elementos da cultura local engrandece esse momento poderoso do filme.

Outras sequências também dizem muito sobre a força de “Invictus”. A visita de François à cela onde Nelson Mandela esteve preso por décadas, com a narração em off do poema que justifica o título do filme, é igualmente uma metáfora dos paralelos que dividem e unem a vida dos dois, como se comandar o país tivesse a mesma envergadura simbólica de capitanear a seleção de rúgbi. Em outras passagens, o bom humor característico de Eastwood mesmo em seus filmes mais dramáticos está presente, como no núcleo formado pelos seguranças pessoais do presidente, inicialmente desconfiados uns dos outros, mas que vão se transformando em companheiros de partidas descompromissadas do esporte nacional.

Sem se esquivar das contradições que marcam a figura de Nelson Mandela, como a dedicação excessiva ao país enquanto as relações familiares são postas de lado, o cineasta estrutura uma história de compreensão universal sobre a capacidade de mudança diante dos problemas que mancham um país. A sequência da partida final da seleção sul-africana na Copa do Mundo de 1995, com a câmera de Eastwood atuando como mais um atleta em campo, é o retrato mais fiel de uma nação inteiramente mobilizada em torno do mesmo ideal. O filme mostra ruas desertas e o estádio em polvorosa; gente que assiste ao jogo no bar, em casa ou escuta a partida num rádio. Essa capacidade de captar as emoções simultâneas que delineiam o último jogo da vitoriosa campanha da África do Sul explica uma sentença proferida por Mandela: “Esse país tem fome de grandeza”. Ao contrário do rúgbi, essa frase faz muito sentido para todos nós, brasileiros.

Túlio Moreira
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