Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Romance

Apesar de provavelmente não ser reconhecido, “Romance” mostra-se corajoso e genial no que propõe e, com um elenco talentoso e um roteiro implicitamente lírico, o filme provavelmente seja o melhor produto cinematográfico brasileiro em muito tempo.

O cinema nacional vem gradualmente quebrando diversos paradigmas. Se antes o mesmo se resumia a pornochanchadas, produções chulas, baratas e sem fundamento, na última década vem ocorrendo uma revolução com obras do nível de “Cidade de Deus”, “Lisbela e o Prisioneiro”, “Tropa de Elite”, “Central do Brasil” e por aí vai. Importamos nossos produtos e conseguimos êxito no circuito internacional.

Primeiro vamos entender o atual “problema” audiovisual do Brasil: “Cidade de Deus”. O cinema brasileiro, ao menos no exterior, vive às sombras do cultuadíssimo filme de Meirelles. Não é para menos, afinal ele foi o estopim dessa revolução. Com uma direção ágil e uma edição inteligente, o longa tornou-se um símbolo nacional e, consequentemente, uma eterna referência. Particularmente, gostei muito. Mas definitivamente não é meu filme nacional predileto talvez por ser deveras pretensioso.

Por outro lado, observamos que há vida inteligente no cinema fora Meirelles. Temos nomes como Breno Silveira, Bruno Barreto e, é claro, Guel Arraes. Arraes é responsável por títulos como “O Auto da Compadecida” e “Lisbela e o Prisioneiro”, que recuperaram uma comicidade perdida na mídia nacional, além de abusar inteligentemente da metalinguagem. Porém, em “Romance” o diretor diversifica o foco de sua produção e deixa a comédia para segundo plano. Finalmente podemos ver um filme que tem em sua essência não a violência ou o humor, mas sim um amor shakespeariano adaptado aos nossos tempos munido de diálogos filosoficamente inenarráveis e com eternas homenagens ao teatro, cinema e televisão.

O filme conta a história de Pedro (Wagner Moura), que está dirigindo e atuando uma peça baseada no romance do século XII, "Tristão e Isolda". Na escalação do elenco, ele conhece Ana (Letícia Sabatella) e os dois se apaixonam no decorrer dos ensaios e apresentações, vivendo esse contraste entre palco e vida real. Contudo, a rotina e a previsibilidade vão desgastando a relação e tudo se agrava quando Ana é convidada por Danilo (José Wilker), um famoso diretor de emissora, para estrelar sua nova novela, o que acaba fazendo de Ana uma personalidade de destaque nacional. Três anos após a separação dos dois e o encerramento da peça, Ana volta a se reencontrar com Pedro e convida-o para adaptar para a televisão uma versão de sua peça, e aos poucos o sentimento que tinham com o outro volta a brotar.

O roteiro do filme é tão bom que faz inveja até mesmo aos internacionais. É genial a maneira em que Arraes e Jorge Furtado aproveitam-se das mais belas metáforas para construir a história de amor dos personagens principais. O que poderia ser o mais clichê dos clichês apresenta-se de maneira inteligente, abusando de idéias de Nietzsche e Shakespeare e mostrando o quanto elas influenciam nas relações atuais, mesmo depois de décadas de suas formulações. Cada diálogo foi meticulosamente constituído e a genialidade em nas falas é evidente ao mesmo tempo em que bela.

Também podemos observar como o roteiro consegue utilizar-se com tanto êxito da metalinguagem. A paixão que se tem com o teatro e cinema é demonstrada vigorosamente e repentinas vezes é reafirmado o quanto eles exercem suas influências sobre nós. O jogo que é feito entre a realidade e a ficção merece palmas, e são gerados diversos questionamentos sobre os limites de cada um em nossas vidas. Sem dúvida alguma, é uma das mais belas homenagens já feitas tanto ao meio artístico.

O elenco carrega nomes que falam por si só. Wagner Moura demonstra o quanto é grande sua competência ao adentrar nos diversos gêneros cinematográficos. Literalmente nos esquecemos que algum dia ele fez o tão ovacionado Capitão Nascimento em “Tropa de Elite”. Letícia Sabatella demonstra uma química incrível com Moura e ambos encabeçam talentosamente o grande elenco. José Wilker dá as caras por aqui também, mostrando que é muito melhor ator que comentarista de Oscar. Andréa Beltrão está fantástica nesse papel e, além de lindíssima, é um alívio cômico ideal para o bom funcionamento do filme. Também temos nomes como Vladimir Brichta, o glorioso Marco Nanini e Bruno Garcia, que completam cuidadosamente o elenco do filme.

A direção de Arraes é muito eficaz. Ele tem grande apuro técnico, além de saber demonstrar fielmente todos os meios artísticos mostrados no filme. Apesar de não ter os melhores ângulos de câmera, é visível sua facilidade ao comandar o filme no todo. A fotografia é um ponto bem interessante também e é feliz ao retratar ambientes tão distintos como os apresentados durante as filmagens. A edição contribui positivamente, sendo responsável pelo sucesso do resultado final, que não deixa que tudo se torne óbvio demais.

“Romance” apresenta-se quase perfeito em sua proposta. É evidente que se esse filme fosse adaptado para Hollywood, certamente ele iria ser forte candidato ao Oscar, ganhar dezenas de prêmios e blá, blá, blá… Mas ainda assim, como produto nacional, o longa mostra-se como um dos melhores filmes de romance dos últimos anos. Usa a metalinguagem da maneira mais inteligente possível e constitui-se em um produto deliciosamente imprevisível e potencialmente belo. Uma grande homenagem ao teatro, cinema e TV, mas acima de tudo, uma homenagem aos cinéfilos.

Amenar Neto
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