Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 16 de setembro de 2007

Saneamento Básico – O Filme

Jorge Furtado é o mais conhecido membro da Casa de Cinema de Porto Alegre e o maior representante do cinema brasileiro que foge do estilo denúncia e das comédias ‘a la Daniel Filho’. Em “Saneamento Básico – O Filme”, ele traz novamente os elementos que tornaram seus longas-metragens famosos: elenco global e piadas inteligentes.

Na comunidade italiana Linha Cristal, localizada no Rio Grande do Sul, os moradores enfrentam já há alguns anos um problema de esgoto a céu aberto. O cheiro e as enfermidades ocasionadas pelo fato chegaram a níveis insuportáveis. Um grupo, então, reúne-se para apresentar à subprefeitura um projeto de saneamento básico orçado em R$ 8 mil para a construção de uma fossa (ou fosso) que resolveria a questão. No entanto, a secretária Marcela (Janaína Kremer) avisa ao casal Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) que não há verba do Governo Federal destinada para tal obra. A única quantia disponível (R$ 10 mil) faz parte de um programa de incentivo à produção audiovisual de cidades com menos de vinte mil habitantes e está guardada para a produção de um curta-metragem de ficção.

É aí que Marina, que trabalha com o pai Otaviano (Paulo José), um carpinteiro local, decide investir na idéia do filme para utilizar o montante na realização da obra de infra-estrutura. Sem manjar nada de cinema, a vendedora vai ter de contar com a ajuda de familiares e amigos, entre eles os vaidosos Silene (Camila Pitanga) e Fabrício (Bruno Garcia). Através de seus personagens, Jorge Furtado dá aula de cinema. Nas tentativas frustradas de concluir o projeto, os atrapalhados habitantes da Linha Cristal vão aprender sobre gêneros cinematográficos, criação de um roteiro, captação de recursos, caracterização de personagens, figurino, cenário, efeitos especiais, produção, dublês, montagem, trilha sonora e direção. A metalinguagem, já abordada em outros trabalhos de Furtado (aqui, incluo também os curtas-metragens), é elevada à máxima potência.

O jogo e brincadeira com as palavras não poderiam faltar já que são outras marcas registradas do diretor. O roteiro com piadas inteligentes e é marcado por um ritmo próprio que consagrou Jorge Furtado como um dos maiores cineastas contemporâneos. As confusões com os termos “ficção”, “quimera” e “dormente” são apenas alguns exemplos do seu talento no trato com a língua portuguesa. Quando o roteiro por si só não basta ou não possui algo marcante, Furtado sabe escolher e dirigir bem o elenco. Arrisco-me em dizer que de seus projetos para telona, esse é o que conta, senão com o mais talentoso, com o melhor desempenho do elenco. A experiência de Tonico Pereira e as participações de Lúcio Mauro Filho e Lázaro Ramos são pontos extras à fita. Janaína Kremer, por sua vez, é naturalmente engraçada. Porém, o destaque fica nas mãos do trio de protagonistas e do veterano Paulo José.

Hoje, no Brasil, não tem pra ninguém quando o assunto é comédia com texto rápido. Fernanda Torres é fora de série e parece sempre agir no improviso, mesmo com texto marcado. Quando providenciam um parceiro de cena à sua altura, o resultado vai muito mais além. A relação entre Marina e Joaquim é o ponto alto dos personagens. A sensação do momento, Camila Pitanga, tira proveito da beleza e do talento e faz de Silene ‘Seagal’ a melhor pior atriz de todos os tempos. O que falar de Paulo José, então? Basta tê-lo em cena, mesmo calado, como na última tomada em que apenas caminha. Aliás, seqüências como essa e a que Wagner Moura vai até a cidade em sua motocicleta parecem estar ali somente para deleite do diretor e, por conseqüência do público, como uma homenagem ao cinema. É certo que elas representam sentimentos dos personagens, mas se não o fizessem já seriam suficiente. Ajuda na bela composição das cenas a trilha sonora que vai de Billie Holiday a Mafalda Minnozzi.

Algo que pode passar despercebido diante das situações cômicas são as alfinetadas que Furtado desfere ao cinema nacional. Logo no início, em assembléia da comunidade, ele deixa claro que nem sempre o que é mais caro garante melhor resultado. Mais adiante, ouvimos que "se é para fazer, melhor fazer bem feito". Discussões sobre a importância do cinema e do incentivo das instituições públicas e privadas ao audiovisual também percorrem todo o longa-metragem. É ao mesmo tempo ousado e confortável para Jorge Furtado trazer à tona tais questões. Bem mais fácil falar lá de cima do que esmagado pelos poderosos. Porém, é de extrema importância que um profissional como ele, que faz parte de um grupo privilegiado como as organizações Globo, estimule a produção nacional da forma devida.

“Saneamento Básico – O Filme” é, portanto, uma verdadeira aula sobre cinema e ministrada por alguém que sabe muito bem do que está falando. Para sorte dos alunos/espectadores, não é preciso nenhum esforço para prestar atenção e aprender a lição.

Igor Vieira
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