Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 05 de dezembro de 2007

Lenda de Beowulf, A

Robert Zemeckis transforma “A Lenda de Beowulf” em um épico que se destaca não só pelo aspecto visual, mas também pela forma que é narrado. Mesmo tendo eventuais deslizes, o longa tira saldo positivo e se junta à incrível lista de bons filmes que Zemeckis possui na carreira.

Baseado em um poema inglês escrito por um desconhecido durante a Idade Média, “A Lenda de Beowulf” conta a história do guerreiro Beowulf (Ray Winstone), um herói que se vê tentado pela glória e invencibilidade. Após enfrentar monstros por mar e terra, Beowulf acaba sendo atraído para o reino de Hrothgar (Anthony Hopkins), onde o terrível Grendel (Crispin Glover) aterroriza todos. Após derrotar o monstro, Beowulf se torna alvo da Mãe da criatura (Angelina Jolie), que muda a trajetória pessoal do herói, tendo repercussão na terceira parte da trama, onde Beowulf precisa enfrentar o maior desafio de sua vida.

O roteiro de “A Lenda de Beowulf” foi desenvolvido por cerca de dez anos para que pudesse chegar ao ponto ideal de ser cinematografado. Neste período, a tecnologia também foi possibilitando maiores diversificações na produção de um longa. Anteriormente, Zemeckis já havia aplicado a técnica motion capture em filmes de grande sucesso, como “O Expresso Polar” e no recente “A Casa Monstro” e, nada mais justo, foi glorificado por sua conquista. No novo projeto, Zemeckis dá uma versatilidade maior em sua história, chegando ao aprimoramento da técnica, por mais que ainda se distancia da perfeição. Foi em torno da aplicação da captura de movimentos que o longa veio sendo discutido desde o início da produção, e agora é possível analisar se tanta discussão valeu a pena. A primeira conclusão é que em live-action ou computadorizado, o longa certamente teria sucesso semelhante pela capacidade de encaminhamento da trama que Zemeckis consegue extrair das imagens. Com a escolha da animação, o longa consegue esconder suas entrelinhas e abusar de efeitos impecáveis e um visual único.

A violência e sexualidade são mais do que elementos da trama, sendo essenciais para seu entendimento. O diferencial é que, principalmente a conotação sexual, acaba se escondendo em diálogos ácidos ou momentos dúbios. É aí que Zemeckis consegue despistar a classificação indicativa e conseguir que um maior número de espectadores confiram o filme. As entrelinhas são lidas e revelam que o longa não possui nada de infantil, tirando o pudor do corpo e não evitando momentos sanguinários de esfolamento dos personagens. Como o filme tem o toque característico da animação, fica clara a diferença e o quanto as imagens se tornam eufêmicas, além de se aproximarem muito ao que se vê em games de monstros sendo estripados. Não condeno isso, até porque acaba sendo mais prazeroso para o público não-infantil, e dá a sensação que o público adulto ganha animações de qualidade, não só aquelas de animaizinhos em perigo que são feitas para crianças.

O roteiro de Neil Gaiman e Roger Avary consegue contar com linearidade literária a história de Beowulf, mesmo que para isso a direção de Zemeckis acabe se sobrepondo à trama em si. Em alguns momentos, parece que o diretor está mais preocupado em criar um seqüencial impecável de luta do que ajustar sua direção à história. Por exemplo, para quê desnudar o herói nas primeiras seqüências, se as partes íntimas dele seriam todas cobertas por elementos de mau gosto em cena? Me senti revendo a seqüência inútil de Bart em “Os Simpsons – O Filme”, quando este percorria pelado a cidade e seu genital era coberto até por um donut. De qualquer forma, Zemeckis mostra sua preocupação com a história principalmente no ato final, quando o herói se entrega à sua falibilidade, mesmo que tenha sido demonstrada no começo, quando narra com pompa sua luta com monstros marinhos.

A direção e o roteiro se entendem na disposição de momentos com mais sarcasmo e seqüenciais sensacionais de luta, mas não se entendem na criação dos personagens secundários. Por muitas vezes, é possível questionar o que eles estão fazendo ali exatamente, já que a maioria deles não é aprofundado. Além deste problema, alguns atos são injustificados, como transformar Unferth em um personagem incompreendido e duvidoso, principalmente quando se ata ao lado religioso ao fim da trama. Entretanto, tais incompreensões são amenizadas por um elenco vocal e corporal bem articulado. O destaque, além de Ray Winstone na pele de Beowulf, também fica com Angelina Jolie. Mesmo com sua participação breve no longa, a atriz cria uma personalidade íntima para a Mãe de Grendel, que mistura as tentações pelas quais os homens cedem sua virilidade. Jolie se preocupa com a narração, com o misticismo e, principalmente, em não tornar seu personagem realmente um demônio, mas sim alguém que agride com a sedução feminina.

A personagem de Jolie também aplica um teor cíclico à história, supondo um passado e um futuro em relação à história de Beowulf, sustentado no passado pelo Rei Hrothgar e no futuro por seu escudeiro Wiglaf. Este também foi um acerto para sustentar o épico em pernas firmes de lendas, e não apenas mais um filme de aventura e fantasia. A proposta de “A Lenda de Beowulf” não é mostrar reis e magos com poderes inimagináveis, e sim sustentar a idéia do heroísmo físico e como essas lendas são contadas. Em um determinado momento, Beowulf confronta um “fraco” e poupa sua vida, justificando que “ele tem muita história para contar”. É nisso que o roteiro acerta, é nessa abordagem do herói que o filme se destaca, acima de qualquer aspecto técnico, acima até mesmo da eficiente e impecável trilha sonora. “A Lenda de Beowulf” é um filme para ser degustado.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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