Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 20 de março de 2007

Bom Pastor, O

"O Bom Pastor" é um thriller político com um conteúdo extremamente rico e digno de elogios. Complexo, prima por apresentar sem maniqueísmos uma visão contextualizada dos efeitos de conflitos em geral. Pena que apresente uma narrativa bastante cansativa, fazendo o ritmo cair drasticamente.

Quatorze anos depois de fazer sua estréia na direção com o bom "Desafio no Bronx", Robert De Niro dirige este "O Bom Pastor", seu segundo longa-metragem, projeto oferecido antes aos diretores Wayne Wang, Philip Kaufman e John Franknheimer. Foram tantos os problemas durante a produção que tudo levava a crer que o filme não iria ser feito. Anunciado desde 2002, o projeto foi negligenciado devido as brigas entre a Warner e a Universal para produzir "Alexandre". Em seguida, perdeu o protagonista: Leonardo DiCaprio, que iria estrelar o longa, optou por atuar em "Os Infiltrados", dando lugar a Matt Damon (que por ironia, também está em "Os Infiltrados"). O problema maior foi o abandono da financiadora Initial Entertaintment Group, devido ao caro orçamento, estimado em US$ 110 milhões. A esperança surgiu quando a Universal fechou com a Morgan Creek e bancou a produção e distribuição do filme. Com tantas controvérsias, o resultado acabou sendo até positivo, ainda que com muitas vertentes a serem reparadas.

Desde sua trágica infância, Edward Bell Wilson (Matt Damon) aprendeu a ser discreto e ter compromisso com a honra. Em 1939, quando era aluno da Universidade de Yale, foi recrutado para participar da sociedade secreta Skull and Bones, uma fraternidade voltada para desenvolver futuros líderes mundiais. Sua mente afiada, a reputação irretocável e sua crença nos valores americanos o tornaram o candidato ideal para uma carreira na Inteligência. Com isso, Edward é selecionado para integrar o Escritório de Serviços Estratégicos (OSS), durante a 2ª Guerra Mundial. Neste período, Edward e seus companheiros trabalham na criação da CIA, uma organização em que a duplicidade é uma exigência e que nada aparenta ser o que realmente é.

O mundo da máfia volta e meia é abordado pelo mundo do cinema, algumas vezes de maneira espetacular e contundente como na clássica trilogia "O Poderoso Chefão" ou no ótimo "Os Bons Companheiros". Curioso é que, na maioria desses títulos, Robert De Niro estava presente atuando, e não é de se admirar que surgisse nele a vontade de dirigir seu próprio thriller. E também não é surpresa que ele tenha optado por focar a CIA, considerada a alma dos EUA, instituição também muito abordada no cinema, mas que pela primeira vez com tamanho realismo. Não é de se admirar que De Niro trabalhou no projeto durante longos 10 anos, visto o enorme apanhado histórico, começando pelos personagens, que, apesar de nomes fictícios, são baseados em pessoas reais. E fez bem em colocar o projeto nas mãos de um roteirista competente: Eric Roth, de "Forrest Gump", "Munique" e "O Informante".

De maneira correta, o roteiro acerta na apresentação do personagem principal e como ele se envolve no conturbado mundo da espionagem. Seus talentos em tempos estudantis (até sua indignação com uma fraude de seu professor é bem colocada), seu treinamento na sociedade secreta com direito a luta na lama e urina (!), e principalmente, o flashback envolvendo um momento decisivo com seu pai ainda quando criança, são de extrema importância para a construção de sua personalidade quando enfim se torna um representante de seu país.

Para quem gosta de História e de analisar tudo o que se passa no submundo dos fatos, as histórias analisadas além do que nos é levado através dos jornais, "O Bom Pastor" é primoroso. Acertadamente, a trama não gira em torno apenas de fatos avulsos, se prendendo a investigações fúteis, e sim em cima de fatos reais, apresentados com extremo detalhismo como a frustrada penetração em Cuba por parte dos EUA a partir da Baía dos Porcos, em 1961, e o contexto geral no início da Guerra Fria. Em um período em que o medo imperava, aqueles sufocantes interesses políticos em que nações se tornavam peças de um complexo jogo, cuja vida de uma pessoa pode se tornar um detalhe mínimo em relação a suas contribuições peculiares para uma nação, é retratado de maneira eficiente por De Niro. Vale ressaltar também o excelente trabalho de Direção de Arte indicado ao Oscar este ano, retratando dos anos 30 aos anos 60 com muita fidelidade, desde detalhes como as roupas, até os carros, aviões, etc.

E o filme consegue ir bem além por não se concentrar numa simples rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética, e sim, num confronto com o homem em si e seu valor em meio aos acontecimentos. O diretor consegue em muitas ocasiões causar um transtorno emocional no espectador, fazendo-nos refletir até que ponto a atitude de um homem é propícia em nome de uma nação. Reparem na cena em que um personagem cai de um avião, e depois a expressão facial do personagem de Matt Damon! Chega a ser algo amedrontador conferirmos sem maniqueísmos, tamanha hipocrisia que cerca nosso mundo – não exclusivamente a CIA, como a franquia do espião Bourne, também estrelada por Damon, faz com estilo. Exemplo perfeito é a reação final de um homem russo após uma cruel tortura.

Mas "O Bom Pastor" falha feio na construção de sua narrativa, extremamente cansativa com quase três horas de duração. Quando um filme tem um ritmo bem construído, ele pode ter o tempo que for, mas não se torna cansativo. No caso de "O Bom Pastor", são muitas as situações fáceis de se pegar no sono, apesar da história interessante. Em inúmeras vezes, o roteiro se prolonga demais em detalhes desnecessários e repetitivos, como seguidas investigações sobre detalhes pequenos (o livro do personagem Ulysses, por exemplo), e o dia-a-dia quase que na íntegra do personagem de Damon. Lógico que a idéia era ser o mais realista possível, mas a realidade muitas vezes chega a ser monótona quando transportada para as telas, como acontece aqui. Sem dúvidas, com uma hora a menos (sim, muuuita coisa pode ser cortada sem que o contexto seja quebrado), o resultado final seria um filme espetacular.

A narrativa é ainda mais prejudicada com a edição não linear de Tariq Anwar, deixando o espectador revoltado com tanto vai-e-vem no espaço temporal. Algumas situações fazendo um paralelo entre o passado e o futuro realmente são necessárias e foram bem apresentadas, como as diferenças da felicidade do personagem principal na juventude e sua profunda angústia na meia-idade. Mas os pulos entre as datas chegam a ser tão constantes que chegam a deixar o espectador confuso sobre o que está vendo, pois na maioria dos cortes para os hiatos entre as datas (uma diferença de cerca de 20 anos), não constituem fatos que estejam relacionados, deixando um clima chato no ar. Sem dúvidas, o filme funcionaria melhor se fosse apresentado em ordem cronológica, intercalando com alguns flashbacks, pois assim não haveria quebra no fluxo da narrativa.

E esse vazio ainda é mais prejudicado pelo péssimo trabalho de maquiagem, em que os personagens parecem não envelhecer simplesmente nada em mais de 20 anos. Matt Damon apenas troca a armação de seus óculos e muda o penteado no futuro, ficando difícil engolir que seu personagem beira os 50 anos de idade. Angelina Jolie, bem, ela apenas pede que não seja mais chamada pelo seu apelido do passado e visualmente não muda nada. Assim, com o constante fluxo entre as datas, e os personagens sem aparentar envelhecimento, é causado um certo desnorteamento no espectador.

Quanto a interpretações, todos estão muito corretos, apesar de apenas Matt Damon realmente se destacar. Mas isso se dá pelo roteiro, já que existem diversos personagens na trama, mas nunca sabemos a fundo a função real de cada um, de modo que se qualquer um sumir de cena e não retornar mais sem explicações, ninguém nem sente falta. Damon transmite com muita convicção a angústia de um jovem que, com o passar do ano, tem sua vida social sendo praticamente apagada em nome do trabalho, não passando de um mero vulto dentro de casa. A cena de seu reencontro com seu filho criança e sua mulher após anos longe, em que a interação mútua parece entre pessoas desconhecidas, é uma amostra do bom desempenho de Damon. Angelina Jolie até que demonstra certa habilidade ao exprimir o drama de sequer conhecer o próprio marido, alterando bem as expressões felizes do início para uma constante tristeza do meio para o fim. O próprio Robert De Niro, Billy Crudup, John Turturro, William Hurt, Michael Gambom, Alec Baldwin (canastrão como sempre) e Joe Pesci (sumido das telas desde 98 com "Máquina Mortífera 4" e espantosamente envelhecido) apenas dão seus ar de graça dando maior riqueza à produção.

De Niro primou por abordar o tema máfia priorizando o drama. É um thriller político com um conteúdo extremamente rico, que certamente merece uma atenção redobrada (se possível, assista-o mais de uma vez se quiser captar tudo mais profundamente), não só pelas referências históricas, como pelas críticas ao contexto político-social. Pena que a produção se perca demasiadamente ao dar voltas desnecessárias em torno de si mesma, se apresentando monótona a maior parte do tempo. Quem sabe da próxima vez De Niro peça umas dicas a seu amigo de longas data, Martin Scorsese, e repare esses defeitos.

Thiago Sampaio
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