Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Lucky (2017): uma poética obra sobre a simplicidade da vida

Correr riscos no cinema nem sempre significa criar o improvável. Às vezes, pode-se simplesmente apostar numa história aparentemente banal e conseguir transformá-la em algo grandioso, porém mantendo a simplicidade.

A arte existe porque a vida não basta”. A frase, de autoria do poeta brasileiro Ferreira Gullar – dessas que a internet prefere creditar à Clarice Lispector ou ao Carlos Drummond de Andrade! -, é simples e ao mesmo tempo carregada de significado. Uma ambiguidade que é a essência da poesia. Mas que, de modo algum, lhe é exclusiva.

“Lucky”, filme dirigido por John Carroll Lynch (estreante na direção e sem nenhum parentesco com David Lynch) conta a história de Lucky (Harry Dean Stanton de “Paris, Texas” e “À Espera de Um Milagre”), um senhor de noventa anos que leva uma vida simples em uma cidade do interior, sempre apoiado em suas rotinas e sem grandes emoções. Tudo – ou nada – muda, quando ele sofre um desmaio e passa a questionar-se sobre a própria vida e a morte.

Harry Dean Stanton, sem dúvida, esse nome é o que há de mais importante no filme. O veterano ator consegue demonstrar toda a sua experiência nas mais simples cenas, muitas vezes sem nem ao menos precisar de uma única fala. Sua expressão, de sutis transformações, nos diz tudo o que é preciso sobre o seu novo contexto. Em uma cena em particular, no momento da consulta, quando ele questiona o médico sobre os motivos que causaram seu desmaio, a forma como ator consegue transformar seu rosto, com leves nuances ao receber a resposta, é simplesmente uma aula de atuação. Nesse momento, todo o questionamento que pode existir no personagem é demonstrado com maestria.

E seus momentos vão além. Tudo é muito bem contado, com um roteiro que não busca a grandiosidade, porque sabe que não há espaço para isso. Nem para um homem como Lucky, muito menos para uma cidade pequena e sem grandes acontecimentos. O texto, então, foca-se no que pode ser grandioso para alguém que vive nessas condições. Seja numa briga de bar ou numa festa de aniversário, para quem está acostumado com rotinas e calmarias, qualquer acontecimento diferente é algo significativo.

Com um primeiro ato inteiro para construir os principais personagens, é na virada do segundo ato que finalmente nos deparamos com algo que torna mais fácil entender os questionamentos de Lucky. Como já conhecemos seus trejeitos e suas rotinas, é a partir desse momento entendemos a sua incredulidade ao perceber a fragilidade da sua condição. Uma pessoa que fumou a vida inteira e que não tem nenhum problema respiratório. Um idoso que sofre uma queda aos noventa anos e não sofre nenhuma lesão. Diante do que, como o próprio médico diz, é resultado de uma soma de perfeição genética e sorte, Lucky se depara com algo inevitável: independente de sua saúde, ele está velho e em algum momento irá morrer. Enquanto essa ambiguidade da vida o perturba, o roteiro brinca com todos aqueles que o cercam, porém sem torná-lo o centro do mundo. Ele é protagonista apenas porque a câmera o acompanha. Ninguém ali depende dele para continuar existindo e as conversas no bar ou no café, se iniciam sem ele e continuam depois que ele parte.

Para pontuar ainda mais o drama, sem sobrecarregá-lo, são criadas situações leves para contrabalancear o peso sentido pelo protagonista. Ao mesmo tempo, há pequenas pontadas de críticas sociais e políticas, que não são exageradas e nem roubam a cena. Elas acontecem em momentos pontuais, sempre num contexto justificado. Algo notável, por exemplo, é mostrar logo na primeira cena, o peito nu do protagonista, sem que haja a menor preocupação de julgamento, e sim de apresentá-lo e identificar nele a fragilidade acumulada ao longo dos anos.

Há também ótimos momentos com Bobby Lawrence (Ron Livingston, de “A 5ª Onda”), que é visto como um aproveitador por fazer seu trabalho, mas que ao mesmo tempo possui seus próprios dramas e apenas está fazendo o que pode para sobreviver. O destaque é, sem dúvida, a participação do diretor David Lynch (“Cidade dos Sonhos”), que interpreta Howard, um velho que tenta reencontrar seu companheiro de longa data: um cágado chamado President Roosevelt. Enquanto Howard nos conta, sempre aos poucos, porque o animal é tão importante, nós passamos a entender que para alguém em sua condição, a companhia de um simples animal pode representar tudo para uma pessoa.

Essa beleza simples, que fala pouco para dizer muito, é reforçada pela soma intensa da direção de arte com a fotografia do filme. Da primeira, temos uma paisagem desértica e árida, extremamente realista, que combina com as rugas que reforçam a expressão cansada de Lucky. Nela, temos momentos de pura contemplação frente ao que é, ao mesmo tempo mais simples e mais grandioso do que nós mesmo. Seja o próprio cágado de Howard, que já viveu 100 anos e pode ter mais 100 pela frente, seja aos cactus que resistem ao deserto e se permitem ser gigantescos, dentro de sua própria simplicidade. Quanto à fotografia, ela é, no geral, pouco saturada, algo que combina muito bem com clima desértico e com a pintura desbotada de uma cidade antiga. Mas há momentos com mais brilho, como na festa de aniversário, com luzes que focam no rosto de Lucky para dar maior destaque aos seus pensamentos de incerteza.

Talvez poucos filmes mereçam um paralelo com a poesia. Independente do caso, “Lucky” é sem dúvida umas dessas raras e honrosas exceções. Tudo no filme é muito simples e ao mesmo tempo carregado de inúmeros significados. É uma obra de arte sobre as simplicidades da vida. É, assim como a poesia, algo pequeno, muito contido, mas carregado de significados.

Obs. Harry Dean Stanton faleceu no dia 15 de setembro de 2017, aos 91 anos. Além de “Lucky”, ele também participou da série “Twin Peaks” em 2017. Em 2018 estreia “Frank and Ava”, último filme com sua presença. “Lucky” acabou se tornando uma homenagem e um belíssimo retrato do fim da vida desse grande ator.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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