Cinema com Rapadura

Críticas   quinta-feira, 18 de maio de 2017

Paterson (2016): um toque de gênio

O melhor filme do ano até o momento apresenta uma historia limpa e honesta, com um resultado soberbo.

Deve ser fácil contar uma história extraordinária, difícil deve ser contar uma história extraordinariamente. E isso a despeito do tamanho ou profundidade de seu protagonista, de suas realizações ao longo da narrativa ou das situações e cenários de sua jornada. Com super-heróis que salvam o planeta em batalhas épicas contra seres supernaturais talvez seja mais uma parte do trabalho; mas com um motorista de ônibus de uma pequena cidade do interior americano que escreve poesias deve ser um pouco mais difícil.

Paterson” é a vigésima direção de Jim Jarmusch que, com sua filmografia errante, permanece um famoso desconhecido do grande público. Seu nome pode soar em sua memória cinéfila, mas talvez seja difícil nomear ao menos dois de seus filmes. Sua obra está inserida na caixa variada de trabalhos chamados de “independentes”, não apenas por não terem financiamento dos grandes estúdios, mas também por nutrirem uma certa peculiaridade estética que parece mantê-las obscurecidas. Uma pena, pois seus filmes são recheados de bons momentos, sensibilidade estética e conteúdo narrativo. Seu último filme, “Amantes Eternos” (“Only Lovers Left Alive”, 2013), por exemplo, pode ser classificado como uma aventura noir de vampiros.

Variando entre temas, com seu novo filme – com um roteiro-arrebatador de sua autoria – o realizador decide mergulhar num universo temático muito restrito, explorando intimamente seus poucos personagens e construindo uma bem acabada ambientação. Em “Paterson”, passeamos à bordo do ônibus conduzido pelo protagonista (que tem o mesmo nome de sua cidade), mas às vezes nos é permitido ultrapassar uma barreira e mergulhamos numa camada mais profunda, o transe criativo de construção de um poema.

Ainda que muito belo, essa representação visual é apenas uma versão do que seria “a alma” de um poeta, como tantas outras que já nos foram apresentadas. Uma versão que sinaliza, num jogo de oposições entre o casal central e na dimensão singela de sua vida, que a poesia pode florescer como um dom a ser levado estoicamente. Ainda assim, é uma versão muito bem acabada, verossímil mesmo, e nos é agradável mergulhar naquela vida absolutamente banal sobre a qual algo tão belo vem sendo criado.

A atuação contida de Adam Drive (o Kylo Ren da nova trilogia “Star Wars“), que entrega sua cara estranha e assimétrica a um homem estranho e assimétrico, colabora muito na realização desse personagem. O ator oferece um comportamento desinteressado de Paterson diante de seu grande dom. Numa das cenas mais preciosas do filme (que é recheado delas), Driver observa o acidente caseiro causado pelo cão de sua companheira com uma despretensão absolutamente carregada de ressentimento. Vê-se, pelas minúcias das feições do ator, uma torrente de intenção e sensações entregues à tela.

Os melhores momentos, contudo, são quando os poemas invadem o quadro. Repetidos algumas vezes, geralmente com pequenas variações entre elas, os poemas são literalmente escritos em tela, quebrando a estética naturalista adotada até então. Paterson distrai-se pelo canto de um pássaro fora de enquadramento, e de algum modo isso nos transmite algo coisa do que significa a poesia, essa escrita tão peculiar que parece mover a mente de tantos, ainda que sempre se mantenha restrita a um público pequeno. Assim, ele é didático sem perder a poética, porque a poesia demanda certas explicações.

Uma cena em particular, porém, sintetiza toda a singela mas poderosa realização desse filme: um encontro entre poetas, como dois espíritos privilegiados que se encontram em meio a nós, meros mortais. O protagonista é testemunha da declamação de um poema por uma escritora mirim da mesma cidade, uma menina que lhe apresenta sua obra “Water Falls”. A sensibilidade pueril das linhas infantis arrebata-o da mesma forma que ao espectador. Absurdamente representado por Adam Driver, a reação de Paterson é de perplexidade, parece que ele vai desmaiar, embora sua resposta externa seja um cordial “esse é um belo poema”.

Essa mistura de estranhamento com o fastio só é colapsada pelos exageros de sua esposa, Laura (uma divertida Golshifteh Farahani, de “À Procura de Elly”, 2009), que tem pretensões artísticas bem definidas e um pouco supervalorizadas sobre suas qualidades. Ainda que seja retratada como um pouco alienada, vivendo de sonhos ilusórios e o dinheiro do marido, ela é a única testemunha de sua linda produção artística, sua única leitora e incentivadora. Também é sua figura de oposição, o elemento contrastante que o faz quem ele é. Mas talvez por reconhecer o deslumbramento de sua mulher é que recuse expor sua criação – talvez os elogios que receba dela seja só mais um aspecto de sua forma exagera de ver o mundo, tão oposta ao protagonista.

Embora muito pouco aconteça nesse filme – e isso afugente parte do público que teria a sensibilidade para apreciar a representação da criação poética –, o fluxo da narrativa faz com que a experiência não se torne enfadonha. A beleza da representação visual criada por Jarmusch também ajuda a nos prender, preenchendo nossos olhos e ouvidos com poesia, sem escorregar no pedantismo ou nas herméticas representações simbólicas. Opta, ao contrário, por um jogo simplório de oposições e espelhamentos, como com Williams Carlos Williams. Assim, faz uma história limpa e honesta. E por algum motivo o resultado é simplesmente soberbo.

Vinícius Volcof
@volcof

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